terça-feira, 10 de junho de 2008

Parte 38 - Fuga Desesperada, Encontro Feliz, Abrigo Vazio e Reflexão sobre Idealismo.

- Merda! - xingava Raveneh - que droga! Não consigo destrancar...
Ela sentira medo ao ver a flecha de fogo brilhando no céu. Vira que ela caíra em algum lugar longe, mas escutava gritos. Droga, tinha que aproveitar a confusão e dar no pé. Mas como? Bem, aqueceu as próprias mãos quase a ponto de se tornar tão quente quanto o núcleo da terra. E aproximou as mãos, quentes, da maçaneta. Sorriu... com o calor, a maçaneta, o ferro, tudo que trancava se derretera *-*
O metal quente nas suas mãos era uma sensação tão boa, tão confortante.

Se sentiu mais poderosa do que qualquer pessoa.

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- O que está acontecendo? - gritou Jorge - soldados, a postos!
Vendo a gritaria, as pessoas tentando sair dali correndo. Até mesmo Bia sentia medo, não sabendo do que se trata. Sinos tocaram em badaladas nervosas e várias flechas de fogo subiram aos céus.
- Crazy! - gritou Jorge - convoque o exército! Estamos sendo invadidos! Crazy, cadê você??
Viu que não havia mais um homem de olhos penetrantes. Oh céus... oh céus!
- Ah-Ah - compreendeu Bia - você foi traído, Jorge. Legal, né?
Jorge mordeu o lábio inferior, furioso. Maldito... Crazy era justamente o cara que alcançou o cargo mais alto do exército em dois meses, através de uma série de bajulações, subornos e assassinatos! E ainda fizera todo o exército o idolatrar perdidamente! O traidor... vestiu uma capa, esqueceu das execuções, correu até a base militar da cidade com tanta rapidez e destreza que foi admirável não ter esbarrado em ninguém nem pisoteado pela multidão.
- Vamos fugir! - gritou Bia - é agora!
- Sim! - Rafitcha concordou - protejam May!
Obviamente já deram um apelido à pequena garotinha.
- Está com todas as flechas, Kitsune? - perguntou Johnny se pondo na frente de Rafitcha, começando uma formação que fazia com que Rafitcha ficasse no meio.
De modo que Johnny e Bia ficavam lado a lado, na frente de Rafitcha. Kitsune e Amai ficavam uma a cada lado de Rafitcha, protegendo Maytsuri pelos cantos. E atrás de Rafitcha, Tatiih podia proteger com seus milhares de dardos envenenados dados por Umrae.
- Sim! - gritou Kitsune - onde você acha que Raveneh deve estar?
A balbúrdia era grande.
Logo se viram cercados: algum exército realmente havia invadido, e soldados entravam de prontidão por todos os cantos. Casas estavam se queimando. E lá longe, o Fórum ardia.
- E Jorge? - lembrou Rafitcha preocupada.
- Deixe Jorge pra depois - disse Johnny - nossa prioridade agora é achar Raveneh!
Os amigos se apoiaram na hora de escapar, pois tradicionalmente desceriam do palanque e seguiriam pela praça. Mas obviamente, devido ao tumulto, não poderiam fazer isso. Mas não tinha outro jeito, pois não havia ponte entre o palanque da execução. Mas na praça, em sua volta, havia várias casas com muros de espessura grossa e telhados retos. Perfeito.
Bia não teve dificuldade em atravessar a multidão, simplesmente deslizando pelo chão como um fantasma e subir aos muros com delicadeza, como se fosse um gato. Estendeu a mão para ajudar Rafitcha, o bebê estando com Tatiih. Rafitcha subiu, Maytsuri passou às mãos de Rafitcha enquanto Bia ajudava os outros a subir, sendo que a última a subir foi Kitsune que se preocupava demais com a sobrinha.
É difícil se equilibrar em um muro, e é ainda mais difícil não olhar para baixo. Mas todos conseguiram, e a toda vez que alguém quase caía, era segurado com rapidez. Começou os primeiros pingos de chuva.
- Maldição! - gritou Tatiih - tinha que começar a chover?
- Esse é um grande momento! - disse Rafitcha - e todos os grandes momentos tem chuva!

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Raveneh resolveu subir as escadas, procurando as escadas. Se surpreendeu de como os corredores estavam vazios: não devia ter soldados para conterem a sua fuga? Percebeu que era guerra, e por isso todos os soldados haviam se retirado. Bem, assim era melhor. Subiu, cara que lugar alto, subiu mais uma escadaria. Uma porta no final. Ótimo.
Não teve dificuldade em concentrar a força em um dos seus pés e chutar a porta com toda a força: todo mundo sabe que quando você supera o primeiro obstáculo, o segundo pode ser vencido facilmente simplesmente porque você adquire mais experiência e confiança. Era uma espécie de varanda, com o parapeito. Se subisse no parapeito, podia alcançar o telhado que tinha forma de "V" de cabeça pra baixo. Você pode imaginar. A chuva estava fraca.
Não se intimidou nem um pouco em subir o parapeito, e a roupa nem pesada: só usava um camisolão enorme e branco e a roupa de baixo. Nada de calças, botas ou capas. Era um luxo que agora não se podia ter. Alcançou o telhado com as mãos, procurando firmeza para se apoiar.
Achou um buraco, esses buracos que sempre tem em telhados. Era um buraco pequeno, mas suficiente para se apoiar. Com um dos cones que apoiava o telhado no parapeito, um cone irregular repleto de ondulações, conseguiu subir no telhado. E foi escalando, pouco a pouco, o cabelo ficando colado ao rosto, o frio aumentando e a expectativa cada vez mais tensa. Quando chegou ao topo, procurou os amigos.
Não estavam no palanque, conseguiram escapar? foi a sua dúvida. Mas ao dirigir o olhar para um dos muros, achou-os. Sorriu, claro que conseguiram escapar! Acaso estavam lidando com seus amigos!
Reparou que do outro lado da casa onde estivera presa, havia outra casa enorme com um telhado plano e janelas abertas. Devia ser um templo, provavelmente, pela bandeira exibida no telhado, uma bandeira toda branca com o desenho de uma estranha flor em tons de vermelho e azul. Se lembrava vagamente desse símbolo. Não importava... se era o que pensava ser, então dentro havia fogueira e alimentos. Seria útil e tinha que proteger Maytsuri.
Desceu pelo telhado procurando sempre manter os amigos, caminhando de forma meio bamba, em vista. Quando chegou ao primeiro muro, eles estavam logo ali, só mais umas passadas.
- Raveneh! - gritou um deles - Raveneh!

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O grupo nunca esteve tão feliz! Claro, você deve ter pensado: ai que coisa mais fácil, acharam logo de cara! Mas aí eu digo: que coisa, tudo tem que sempre difícil? Uma facilidade no meio do caminho é sempre boa! E havia soldados lutando... podia-se ouvir os berros.
- Venha - disse Raveneh - venha!
Rafitcha foi a primeira, sendo apoiada por Raveneh no telhado. Logo veio Bia que ajudou todo o resto a subir. E assim todos ficaram no telhado, engatinhando até o topo. Rafitcha estava realmente em dificuldades porque tinha que segurar o bebê, mas Raveneh foi inteligente e logo solucionou o problema. Ela foi sozinha até o telhado plano da casa ao lado, onde havia a bandeira. Pegou a bandeira, rasgando-a e fez uma espécie de mochila com ele, e subiu até o telhado novamente (você deve imaginar como essa aventura cansou a nossa querida heroína!), onde colocou Maytsuri nas costas tal como as índias seguram seus filhos quando vão trabalhar. A bandeira estava molhada, mas o bebê já estava molhado de qualquer jeito mesmo e bebês mestiços tem bem mais imunidade corporal. Ainda bem.
A chuva engrossou.
- Venham! - gritou Raveneh - para dentro daquela janela!
Raveneh foi a primeira porque estava com o bebê, e a última foi a Bia porque tinha os reflexos mais rápidos e assim podia auxiliar os outros a descerem para o telhado plano depois para a janela.

- Wow - murmurou Rafitcha - o que é isso, um templo?
- Exatamente - Amai respondeu - um templo.
Era uma sala enorme e quadrada. De um lado, uma porta imensa de madeira, com detalhes em relevo, retratando alguma história. No chão, vários tapetes coloridos estendidos em cima do chão feito de madeira clara, alguma madeira que tinha um cheiro delicioso. E na frente, ora, na frente era um espetáculo: uma lareira acesa, a fumaça escapando pela chaminé (obviamente as chaminés não são retas senão em caso de chuva, não poderia fazer uma faísca sequer). E na frente, um tapete branco estendido, com sete incensos acesos emanando um leve aroma de verbena (você já sentiu o aroma de incenso de verbena? Pois é), e entre os incensos, um pote de cristal com água e uma estranha flor toda branca, com pétalas lindamente desenhadas e no centro, um desenho dourado começava.
- O krishinnä - disse Kitsune - a flor do perdão. É um templo mentiroso...
- Templo mentiroso? - perguntou Tatiih não entendendo nada.
Claro, somente Kitsune e Amai entendiam alguma coisa dali. Nem mesmo Raveneh conhecia muita coisa a respeito da religião da sua terra natal, pois não tivera uma criação religiosa e sequer conhecia as histórias.
- Templos mentirosos - começou Amai - são os templos que mentem sobre a religião. Quando os mágicos foram expulsos, suas religiões foram embora também. Todas as religiões foram proibidas, exceto uma, a oficial, de comuns. Seu nome era murritana (se fala 'muritan'), e seu símbolo é a flor vermelha e azul. Não sei bem a história que cerca essa flor, mas sei que é um flor rara de achar e usada para fazer chás alucinogénos. Porém havia outra religião, cujo nome se perdeu, que era dos mágicos e comuns também.
- Quando houve a opressão... - continuou Kitsune sabiamente - essa religião sem nome resolveu se fundir com a religião murritana, criando os chamados templos mentirosos: por fora, parece um templo murritana. Aliás todos os sinais são dessa religião, exceto pelas flores. Essa flor é dita como "a flor do perdão". Não sei muita coisa, mas um templo que tem essa flor em vez da outra vermelha e azul... é um templo mentiroso, oculto.
- Ah - Tatiih disse por fim - acho que entendi. Isso significa que esse templo é amigável. Legal.
- Wow - Raveneh concordou - May, May, meu bebê, meu bebê... como estão?
- Estamos bem, querida - disse Johnny abraçando Raveneh por trás - e como está você?
- Estou viva - murmurou Raveneh - é o que importa.
- Não fizeram nada de ruim com você? - perguntou Rafitcha preocupada - fiquei me sentindo tão culpada... eu fiquei aterrorizada só de imaginar no que você estaria passando...
- Está tudo bem comigo - murmurou Raveneh - quem foi executada foi uma cópia que criei de si mesma. Ela que sofreu toda a tortura antes de morrer...
- Você criou uma cópia sua? - surpreendeu-se Bia - mas é uma magia extremamente poderosa e difícil de fazer.
- Eu consegui fazer - Raveneh sorriu - não sei se fiz com perfeição. Mas estou aqui inteira...
- Você tem as lembranças da sua cópia? - perguntou Bia intrigada.
- Não.
- Então fez quase perfeito - disse Bia - se você se lembrasse das sensações e tivesse todas as lembranças que a sua cópia teve, aí seria um processo perfeito. Mas acho que você não quer realmente ter essas sensações, né?
- Não mesmo! - Raveneh disse friamente - eu acabei recebendo algumas sensações que a minha cópia passou, mas de forma bem fraca, sabe... eu não quero mais sentir a dor que foi ter a corda enlaçada no pescoço.
- Vamos estar bem aqui - Johnny sorriu, a boca encostada na orelha de Raveneh, um abraço tão forte de dois namorados que não se encontravam há muito tempo - vamos estar bem.
- Sim... sim - Raveneh tentou conter as lágrimas, mas como conseguiria quando ao mesmo tempo estava imensamente aliviada por ter conseguido encontrar os amigos e enormemente apreensiva pela batalha que se desenrolava lá fora.
- O templo está vazio - observou Rafitcha - isso é estranho, não?
- Nem tanto - disse Kitsune - as pessoas evitam vir para templos, mesmo em tempo de guerra. Elas tem medo da repressão e até mesmo a oficial, a murritana, é evitada por medo. Templos não são mais lugares de paz e acolhimento.
- De qualquer modo - disse Tatiih - temos que procurar algo seco para embalar Maytsuri! Ela é um bebê, não pode ficar molhada assim!
- Sim sim! Oh que mãe desnaturada eu sou... - riu Raveneh se aproximando da lareira acesa, desembrulhando o bebê.
A menininha sorria, sorria contente. Olhava para o céu com dois brilhos azuis no olhar, sorria. Ela não tinha cara de joelho como muito bebê *-*
- Achei algo aqui - disse Amai - parece um dos tapetes limpos.
Trouxe um manto branco. Provavelmente era um dos tapetes que ainda iam ser postos no chão.
Raveneh embalou a filha (minha filha!), a acariciando e dando o seio para ela mamar. É uma coisa muito fofa um bebê mamar, pelo menos eu acho. Dá vontade de ficar 'guti-guti mamãe que bonitxinha mamando!' embora isso seja uma atitude idiota. Mas que dá vontade, dá. Bebês dão vontade de morder.
- Vamos pensar no que fazer agora - disse Bia - Kitsune, Amai, o que está havendo?
- Provavelmente é Grillindor agindo - disse Kitsune - as pessoas que vivem naquele reino são descendentes são os banidos daqui... e sempre prometeram retomar tudo... deve ser o começo dessa operação, dessa vingança.
- Bem-feito - disse Raveneh friamente - quero que todas essas pessoas morram, sintam na pele o que fizeram anos a fio.
Rafitcha assumiu um olhar vago, somente pensando nas vidas inocentes perdidas. Crianças que sequer conhecem a história da opressão, crianças manipuladas para odiarem mágicos, crianças bastardas machucadas como Raveneh, mulheres grávidas, pessoas perdendo a vida de forma trágica. Como podia a raça humana ser tão bárbara.

- Viver nas Campinas? Deixar de ser advogada? Então pra quê eu paguei seus estudos, Rafaela?
- Mas, pai... Campinas é um lugar de paz! Eu sempre quis viver lá! Eu quero deixar esse fórum, essa burocracia, essas pessoas culpadas inocentadas e os inocentes que são culpados! Como posso defender pessoas que na verdade são culpadas!
- Então pra quê você estudou Direito?
- Essa não era a minha visão do futuro - Rafitcha quase chorou - eu não quero ser uma dessas advogadas que defendem qualquer coisa por dinheiro!
- Está sendo idealista, minha filha. O mundo não é assim.
- Isso já não me importa mais - Rafitcha deu as costas e completou friamente - porque as Campinas é assim e é pra lá que eu vou.
Só escutou a fungada da mãe e o suspiro do pai.


Agora está tudo bem entre eu e meus pais... pensava Rafitcha. Meu pai até se tornou mais sonhador depois... e eu pude seguir com a minha filosofia de vida... mas realmente ele tinha razão: eu estava sendo idealista demais, eu sou sonhadora demais... Eu achava que podia parar com as injustiças, com a exploração... Mas como posso parar uma guerra que nada tem a ver comigo? Conteve as lágrimas.

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