domingo, 21 de dezembro de 2008

Parte 65 - Uma andorinha só não faz verão. Já várias fazem o inferno.

A isca foi perfeita.
O demônio parou de se preocupar com as plantações. Ficou concentrado nela, no borrãozinho que ela fazia quando se movia bem rápido, no cheiro apetitoso de sua carne! Hm!
Jogou a sua língua em cima dela, tentando acertá-la. A toda hora ela saltava com o impulso, sempre a língua errado e arruinando a plantação de beterrabas.
Bem, nunca gostei de beterrabas mesmo.
Doceh sorriu, mirando mais dardos de mel a esmo, sem nenhuma mira. Surpreendentemente, dos catorze dardos que ela jogou, nove acertaram a cabeça. Umrae sorriu, agradecendo por não precisar da cimitarra, somente da sua arma predileta. Besta e dardos.
Dardos venenosos.
Se o demônio não caísse, Ly ia entrar em ação com a sua espada.

Um dardo.
A língua pegou Fer de raspão.
Dois dardos.
Fer se esborrachou de costas para escapar.
Três dardos.
Fer ofegava ao conseguir escapar, por uma triz.
Quatro dardos.
E a pobre Fer, foi pega por um dos espinhos, bem na ponta, na região do antebraço esquerdo.
- AGORA!

Ly se moveu, aproveitando a lerdeza maior do que a comum (com certeza, pensou ele, causada pelos treze dardos de Doceh e Umrae) do demônio e a espada rompeu de forma vertical, exatamente rompendo os lábios ao meio e chegando até o peito onde parou, já que era aí que começava a estrutura de pedra.
Nessa hora, Fer se viu com o braço esquerdo todo furado e quebrado e vários ferimentos de queda pelo corpo.

Três demônios caídos.
Quase todas as plantações de um ano inteiro simplesmente arruinadas.
E a preocupação em alguém morrer.

Ophelia está indo longe demais, resmungou Umrae para si mesma.

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- Meu Deus! - chocou-se Nath ao verificar a condição de Yohana, quando esta entrou na enfermaria, sendo carregada por Rafitcha, Tatiih e Kitsune - e ela vive ainda!
Nath apressou o leito de forma ligeira, e o lençol tão branco e limpo imediatamente se sujou com o sangue. Outro grito de dor vindo de Yohana.
- Não pode deitar - concluiu Nath - tem espinhos nas costas!
Nath caminhou para a porta, gritando por Amai e Thá.
- Fiquem aqui - apontou para as três, sujas de sangue e terra. Fora muito difícil cortar os espinhos em meio ao choque de terem as plantações destruídas e a fatalidade que quase se abateu sobre Fer e os outros.
- Droga, e eu preciso cuidar de Fer... - murmurou Nath tentando analisar a situação de Fer enquanto abria o armário, procurando algum unguento, loção, feitiço para fechar feridas. Só achou um alicate.
- Não se preocupe comigo - disse Fer se sentando em um leito - eu aguento, não se preocupe!
- Não! - Nath mordeu os lábios inferiores - Tatiih, você que já recebeu um pouco de educação minha, vá cuidar da Fer - mandou, trazendo um alicate, um pano branco, uma bacia cheia de água e um unguento - precisamos suspendê-la no alto.
E assim Ly e Raven foram chamados e suspenderam Yohana do alto, as cordas fragéis que prendiam os braços de Yohana.
Ela já não queria aguentar muito, de tanta dor.

Nath ficou com medo demais.
Os espinhos, se retirados, podiam causar hemorragia de verdade. Sabia que todo o sangue ali era pelas artérias e veias feridas pelos espinhos, mas era pouco se fosse comparado ao que ela podia soltar.
Com alicate, retirou um dos espinhos que estava localizado no braço.
O corpo absorve vários materiais.
Mas o espinho não era um desses, repleto de veneno, reparou. De fato, tinha que tirar todos eles.

E com um alicate, começou o trabalho.
Espinho por espinho. Grito por grito.
Lavar ferida por ferida.
Órgão que tentava se recuperar.
Mesmo assim, ao cair da noite, Nath verificou que os danos eram irreparáveis.
- Obrigada, Nath - Yohana disse as duas palavras em meio a muito esforço, entre os gemidos.
O sangue que havia se contido para garantir um mínimo de vida à Yohana resolveu se rebelar. Jorrou por todos os buracos internos, e tanto Nath como Amai e Thá preferiram deitar a Yohana na cama, acender uma vela e perguntar sobre um último desejo.
- Nada.
Foi a resposta de Yohana.

Foi o modo da cantora mais popular dar adeus para os que foram seus amigos.

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Já era tarde quando Lala resolveu dirigir a palavra para Siih:
- Ravèh adorou a comida que preparou para ela - e deu outra olhadela para as vestes sujas de Siih - vista-se de uma forma melhor.

Os corredores do palácio pareciam estranhamente vazios.
- Hoje é o segundo dia desde que a carta chegou às mãos de Bel - lembrou.
Ninguém.
Por onde a Ophelia andava? Descansando como a Lala aconselhara? Maquinando algum novo plano, decerto. Afinal ela não vivia disso? Ajeitou a cesta com cuidado, fazendo com que as roupas sujas cobrissem o fino lençol que encobria a comida para Kibii. Tinha que parecer uma lavadeira, e entre os pensamentos, encontrou-se com Lefi, entre os corredores.
- Vai dar de comer para Kibii? - perguntou ele, muito cuidadoso.
Siih fez um sinal afirmativo, mostrando a cesta.
- Notícias das Campinas - Lefi contou - três demônios acabaram com as plantações de Campinas. Foram todos mortos, mas ouvi dizer que alguém morreu. Que ela reze para que não seja um dos amigos dela.
- Céus - Siih suspirou - lamentável!
Lefi seguiu adiante. Ele trabalhava muito, assim como ela. Mas a irmã se perguntava como o irmão conseguia saber tantas coisas... provavelmente porque Lala se esforçava para que ela não ficasse sabendo de nada, sendo alheia. O irmão, sendo mantido longe das suspeitas, então tinha mais espaço para escutar conversas atrás das portas e tudo o mais.
Mas agora ela tinha um informante, o que já era o suficiente!

- Com licença?
Siih sorriu.
Kibii, dessa vez, estava ajoelhada no canto do galpão.
- Ora, dessa vez está solta dentro do galpão? - surpreendeu-se Siih, e Kibii respondeu com um fraco sorriso:
- Lala passou por aqui uma hora atrás e disse para eu aproveitar bem uma noite de liberdade dentro daqui que serei transferida para outro lugar.
- Que outro lugar?
- Como saberei?
Siih se aproximou dela, os passos sendo bem medidos, a cesta sendo pousada suavemente. Kibii retirou toda a roupa suja e por fim o fino lençol limpo, encontrando um verdadeiro banquete. Sorriu, satisfeita.
Carne de galinha, salada, arroz, maçã, bananas, e...
- Mimatta? - cheirou a garrafa - é de batata e malte! Esse tipo sempre tem uns... 80% de álcool!
- Serve para abrandar a dor nos momentos mais tensos - sussurrou Siih - achei que pudesse ajudar.
Kibii escondeu a garrafa atrás de si, agradecendo.
Comeu tudo. Era muita coisa, mas não podia simplesmente deixar de comer, precisando de tanta energia!
- Tenho uma notícia infeliz - começou Siih, desajeitada.
Kibii parou de comer na mesma hora, gelada.
- O que é?
- TrêsdemôniosinvadiramCampinasplantaçõesforamarruinadasetemboatoquealguémmorreu - disse Siih, chocando as palavras uma contra a outra, de tão nervosa que estava.
- Fale direito - rosnou Kibii, ameaçando com um garfo.
- Er... três demônios invadiram o seu reino...
- Eu não moro em um reino - corrigiu Kibii imediatamente, ao que Siih ignorou:
- Alguém morreu e as plantações foram arruinadas.
- Morreu? Quem? - perguntou Kibii, de sobressalto.
- Não sei - Siih mordeu o lábio inferior, insegura - desculpe, não sei.
Kibii não quis comer mais, se roendo de dúvida e medo. Mas a garrafa ela guardou.

Houve uma época que ela passou em um vilarejo, onde havia um homem bêbado. Kibii relembrou dessa história com todos os detalhes: podia se lembrar da cor da noite em que ela passou lá, da cor dos olhos deste homem e da voz gutural dele. Também se lembrava da zombaria dele nas palavras escolhidas:
- É que a gente não sente dor com uma boa cervejinha, sabe?
Ele fedia terrivelmente à cerveja dos humanos comuns e reles, e ria. Mas parecia tão feliz!
Soube depois que o homem tivera uma família boa, com esposa e sete filhos, e todos eles padeceram ao domínio dos nortistas, um por um. Que a esposa e as quatro filhas foram estupradas por meses a fio e resolveram se matar todas juntas, e os três filhos foram subjugados, escravizados e mortos.

E agora a garrafa de mimatta a aguardava.
Para entorpecer a sua dor como fizera com a dor daquele homem cuja família se perdeu.
Ela bebeu o primeiro gole.

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- Que fenomenal - Ophelia sorriu, seus olhos piscando de deslumbramento - adorei o dia de hoje!
- Três demônios foram mortos - lembrou Lala, com severidade - isso é motivo para você adorar a notícia?
- Ora, um mero detalhe. Eram idiotas, eu vi pela janela - Ophelia disse - vi toda a batalha, dá para ver tudo das Campinas daqui do meu quarto, impressionante!
- Uau - Lala não parecia nem um pouco deslumbrada como Ophelia.
Ela se ajeitou na poltrona, encarando a amiga que estava sentada junto à janela, encarando as Campinas. Várias velas iluminavam o aposento, e Ophelia parecia uma criança sorridente, se gabando de um nova brincadeira.
- Pela janela, reconheci o cara e duas garotas. Penso que aquela tal de... Bia partiu ou morreu, sei lá. Ela não estava lá - disse Ophelia - Umrae e Ly estavam lá. Rafitcha também, ela ajudou uma garota ferida.
- E...?
- Umrae é extraordinariamente perigosa. Ela não deu o golpe de misericórdia em nenhum dos três demônios, mas ela planejou... eu percebi que ela foi quem guiou os companheiros na luta, servindo de inspiração. Eu a quero. O que acha?
- Acho que você tem uma visão extraordinariamente boa - observou Lala.
Lala se levantou, e antes de abrir a porta, perguntou:
- Quer alguma coisa? O jantar ser servido mais cedo?
- Não. Quero comer na hora certa - Ophelia respondeu - obrigada, Lala. Pelo dia de hoje.
- Não tem de quê - e fechou a porta.

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Luto.
Raveneh se perdera e fora, afinal das contas, sendo levada pela multidão, descendo a escadaria e cuidando de Maytsuri. Achou-se tola por imaginar que poderia oferecer algum tipo de ajuda militar.
Rafitcha ainda não conseguia se recuperar do choque de ter ajudado Yohana, com todas aquelas feridas horríveis, todo aquele desespero, aquela mutilação de carne... Amai consolava Nath, enfermeira abalada por não ter conseguido salvar Yohana. E Fer, que foi cuidada por Doceh e Tatiih, não queria comer nada. A visão de Yohana praticamente gritar de dor a cada espinho arrancada lhe embrulhava o estômago.

Para todos, a Yohana era a própria beleza mutilada.

- Mamãe, quero comer - Gabriel resmungou, puxando a saia de Maria.
- Oh, meu doce - Maria estava abalada, olhando para as cestas de comida - verei alguma comida para você.
Se levantou e foi até à cozinha, onde achou um frasco de mel, ao lado de um pote cheio de torradas secas. Passou mel em uma dúzia de torradas e as entregou para o filho.

Umrae, Doceh e Thá limpavam as armas usadas, tentando remover todo tipo de indício do sangue dos malditos demônios. Enquanto isso Kitsune contava as cestas, e Raven e Ly verificavam a situação lá nas plantações, o que fazia Doceh ficar morrendo de preocupação.
- É perigoso Ly e Raven ficarem sozinhos lá em cima - ela dizia - e se eles atacarem de novo?
- Isso não vai acontecer - tranquilizava alguém, geralmente a Capitã Bi, que ficou arrasada de não ter ajudado, por estar longe da batalha no momento.

- Bem - começou Kitsune - é bom ter alguma plantação salva, senão morreremos de fome no decorrer do verão.
Um olhou para outro com ansiosidade e tristeza. A fome parecia algo distante, afinal sempre tiveram tudo ali, ao alcance da mão, tudo tão perto e gostoso, sempre tendo comida no prato!
- O estoque para inverno? - murmurou Maria, desalentada - teremos algum?
- Já tem um? - perguntou Amai, curiosa, ao que Umrae respondeu:
- Temos, começamos na primavera - deu uma rápida olhada para Maria e disse - mas se mais da metade das plantações tiver se arruinado, vamos ter que racionar ou morreremos de fome.
Se entreolharam, ficando em um estranho e incômodo silêncio.

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- Vou mandar uma resposta - murmurou Bel, cansada - eles não devem aguentar de ansiedade.
- Mas como fará para a resposta chegar até eles? - perguntou Polly, enquanto colocava as luvas a prova de fogo - eles não estavam vigiados por Ophelia?
Bel parou de andar por um momento e olhou para Polly, sob a luz das tochas colocadas no corredor da base militar.
- Mandarei para as Campinas - Bel sussurrou - vai ser complicado, mas acho que consigo.
- E como fará isso? - Polly mordeu o lábio inferior - aqueles pássaros mensageiros só existem por lá...
As duas continuaram a andar, descendo a longa escadaria até o setor dos dragões.
- Ratta já está cuidando deles? - foi a pergunta preocupada de Bel, ao que Polly imediatamente tranquilizou:
- Sim, ela está cuidando especialmente da Zadilla que ficou doente - Polly observou - mas, como fará?
- Utilizarei um dos inteligentes - murmurou Bel - você acha que a Gerogie pode dar conta do recado?
- Claro - Polly abriu a grande porta que separava os corredores e a base do grande terraço que havia.

Era imenso. Primeiro um grande savana, repleto de grama e era todo limpo, porém com várias correntes pelo chão. Em toda a volta, várias colinas cujos cumes atingiam os céus com sutileza, entre as nuvens. Parecia não oferecer nenhum tipo de perigo, mas tanto Bel quanto Polly sabiam bem os perigos que podia ter em um ambiente tão aberto e deserto, quando se trata de dragões, simplesmente as criaturas mais antigas e poderosas que existem no mundo.
Polly fez uma leve referência e foi para a direita, onde não havia o savana, mas um estábulo que comportava cerca de vinte cavalos. Em menos de dez minutos, ela voltou com dois cavalos, ambos de pelagem castanha, e também dois lampiões.
- Obrigada, Polly - disse Bel, montando no cavalo - vamos encontrar Ratta. Você disse que ela estava cuidando de Zadilla?
- Sim - Polly respondeu, também montando no seu cavalo.
Quando se trabalhava em uma área tão grande, tem que se ter algo prático e cômodo para se mover de um lado para outro. Bel, assim como suas subordinadas, preferiam os cavalos: dóceis, práticos, sem grandes frescuras como pensar ou voar.

Correram alguns quilômetros, atravessando as colinas rapidamente.
Logo encontraram Ratta que saía de uma caverna.
- Zadilla está boa - ela disse, removendo as fortes luvas - aliás, todos os dragões falsos da Caverna Vermelha estão excelentes, em ótimo estado.
Bel encarou as cavernas. Havia várias colinas e visto do outro lado do savana, imagina-se que elas sejam enormes e extensas, mas era somente uma propaganda enganosa. Por trás das colinas, o cenário contrastava terrivelmente: do lado direito, podia se ver uma fileira de um pequeno rio que descia de um monte, onde havia uma caverna. Ao norte, se encontrava o mais bonito dos desertos, por onde os dragões azuis passeavam. E ao oeste, à esquerda, encontrava-se um pequeno vulcão, um ambiente quentissímo e descia rios de lava, e estes se encontravam com o pequeno rio de água pura que descia pelo monte das cavernas.
Atrás do monte onde havia a caverna, uma floresta fechada e misteriosa surgia perigosamente e seduzindo qualquer incauto a se aventurar nela. Todos os ambientes eram perigosos para gente que não soubesse como se mover, e isso fazia Bel se alarmar. Mas ela se acalmou quando finalmente o presidente militar decidiu que aquela base militar era dedicada exclusivamente para os dragões e militares de maior porte, e então os calouros ficaram para outra base.
- Depois os verei - Bel disse - o seu turno é o de agora, certo?
Ratta respondeu, batendo retinência de forma descontraída:
- Sim. Eu, Lucy e Ivinne somos responsáveis pela Caverna Vermelha.
Polly olhou para Bel com uma expressão curiosa, como se quisesse saber o que ela estava pretendendo.
- Polly - Bel olhou para ela de volta, com aquele olhar duro - não é agora que começa seu plantão junto ao Pântano Negro?
- Sim, Comandante, sim! - Polly saiu com o cavalo em disparada pela pequena trilha ao lado do monte. Bel se recompôs, e nos olhos de Ratta, ela parecia linda com o uniforme tradicional dos guardadores de dragões: grandes botas de combate, em geral negras, que se ajustavam direito debaixo dos joelhos, calças negras e seguras por um enorme cinto de veludo. Ainda havia as proteções pelo peito, que consistiam basicamente em uma camiseta branca, depois uma faixa acinzentada cujo material era impermeável ao fogo. E ainda usavam um colete de couro por cima para se revestir contra as garras mais fortes e os jorros de eletricidade que alguns dragões soltavam, e por cima uma jaqueta preta, de gola alta e vários bolsos para guardar alguns equipamentos. As luvas de couro complementavam a proteção, e os guardadores sempre usavam os cabelos presos para evitarem serem destruídos por algum filhote travesso. Quando adentravam nos domínios dos dragões mais avermelhados, preferiam usar máscara no rosto para não terem que cheirar enxofre e ao entrarem no Pântano Negro, tinham que tomar uma série de cuidados para não enfurecer nenhum ser por ali.

Não era um uniforme muito fresco, podia-se dizer, ainda mais que as calças também tinha lá a sua série de revestimentos especiais e tudo o que fosse preciso, mas Bel adorava usá-los. Sentia-se mais protegida contra qualquer intempérie que se abatesse sobre ela.

- Volte ao seu trabalho - Bel mandou - diga para Ivinne e Lucy cuidarem da Zadilla direito, ela é muito frágil. A ordem se aplica a você. Cadê os novatos?
- Não chegaram ainda do Monte de Areia - Ratta respondeu, olhando para a direção do deserto - acho que o I* está pegando muito pesado com eles.
- Hmpf - Bel crispou os lábios de irritação - eu vou falar com Gerogie. Volte à sua posição.
- Está bem, Comandante. Está bem.
Ratta voltou à Caverna Vermelha com a retidão de uma soldada.

Enquanto isso, Bel tentava calcular uma estratégia.
As Campinas... lembrava-se do território. Grama para todos os lados, floresta, mar. Não havia nada com fogo por perto, então talvez por isso não pudesse levar um dos vermelhos. Mas se perto do mar, havia uma praia e a floresta continha cachoeiras, riachos e uns pequenos pântanos, então podia-se arriscar a levar uns azuis e uns negros, quem sabe? Precisava pensar bastante.
Era a mais alta comandante relacionada aos dragões, pois acima dela só havia o General Lucien e este estava prestes a se aposentar e "ter mais tempo com a família", de acordo com ele próprio. E na opinião de Bel, ele só subiu, pois conseguira subornar o rei de modos impróprios, já a incompetência dele para mexer com dragões era absurda.

Percebeu que faria vinte e sete anos dali a dois dias. Que estranho, nem lembrar do próprio aniversário, tão entretida que estava em se ocupar dos dragões!
Vinte e sete anos... mas parecia dez anos mais nova, graças a habilidade mágica em seu sangue. Assim como Umrae que era três anos mais velha que ela, porém Bel apostava todos os seus dragões verdadeiros que Umrae ainda mantinha a mesma face jovial que tinha ao treiná-la quando ela foi nas Campinas, ao dezessete anos.
- Vamos. - disse para o cavalo.
E assim ela se dirigiu ao pequeno vulcão, ao oeste.

Respostas à comentários:
- Umrae: não, sem chance. Como pode ver, todos os reinos em volta foram atacados pelos demônios. E os elfos estão muiiiiito longe para conseguir sequer imaginar o que há de podre no reino das fadas.
- Polly: com certeza, né? Sua participação mal começou *-*
- Kibii: siim, escreverei mais capítulos e já sabes seu fim -rs

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Parte 64 - Cinco metros de pedra. [e: Siih em "Rompendo Carnes"]

Siih quase vomitou e com certeza nunca mais dormiria em paz. Mas preferiu obedecer à Lala e mandar o corpo de Gika para a cozinha, como o almoço da estúpida Ravèh. Alicia ficou chocada, Lefi se escandalizou. Mas ninguém gritou com Siih. Ninguém quis dizer o quanto aquela atitude era horrenda. Todos sabiam que Siih não tinha outra saída, que estava presa pelo próprio desespero.
Em menos de meia hora, Gika foi feita de almoço.

Ninguém queria tocar naquele corpo.
Ninguém queria machucar aquele corpo.
E foi a própria Siih que teve que preparar, suas lágrimas rompendo as bochechas de culpa e dor.

Foi ela quem tirou as roupas de Gika e foi ela quem fez um corte no abdomêm, como quem faz autópsia.
Foi ela quem viu todos os órgãos internos, e tentou imaginar como preparar o prato.
Alicia quase vomitou, mas por lealdade, ajudou Siih. Ambas abriram todo o corpo, verificando que todos os órgãos estavam em seu estado normal, embora as veias estivessem esverdeadas e vários órgãos apresentassem algumas partes corroídas. Aparentemente estava tudo bem, mas o estômago, por exemplo, tinha a membrana meio que esfarelada.
- Efeitos do veneno - pronunciou Alicia.
- Você acha que isso matará o demônio? - perguntou Siih, ao que Alicia respondeu:
- Se isso acontecer, perfeito.
Alicia aguentou tudo com franqueza. Embora quisesse vomitar, não fez nenhuma cara de nojo e não chorou. Embora sentisse ódio mortal por Lala e por Ravèh, não envenenou nada. O medo de que Ophelia se vingasse de qualquer ação mal-feita era muito maior. Siih fungou quando ajeitou tudo como alguém ajeita um porco para assar.
Não se incomodou de tirar os dentes ou os ossos, ou mesmo os cabelos. Os demônios comiam tudo cru, então do que aquele em especial reclamaria? Estava assado e temperado, uma delícia para o "exigente" paladar dele!

Assou-a, temperou-a com sal, alguma erva de forte sabor.
Por um desejo íntimo de vingança, a pimenta mais forte foi utilizada.
Arrasada, Siih mandou a Gika, morta, assada e devidamente temperada, para ser devorada pelas presas de Ravèh.

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Ophelia olhava pela janela, sonhadora e um pouco feliz. Sorria, verificando que de fato os demônios adentraram em Campinas. Que feliz, logo veria que eles estavam satisfeitos, afinal a carne dali deve ser deliciosa!
Seus olhos meigos de criança miraram os três demônios, sorridentes. A quantidade a desanimou um pouco, mas nada de muito perigoso. Logo os outros viriam atrás, ela esperava.
Embora ela quisesse que não fossem somente devorados e sim que alguns sumissem, sem deixar rastros...
Era muito mais sutil, mais desesperador, mais angustiante aquela sensação de não saber para onde foi, se está bem...

Você é tão cruel, Ophelia.
Lembrou-se de sua mãe, que penteava seus cabelos todas as noites.
Ophelia, todos querem você morta.
A voz calma de sua mãe, seus olhos sorridentes.
Minha querida Ophelia, veja todo esse sangue! Não é lindo?
Seus olhos se deleitaram com o verde das Campinas sendo ameaçado por três negros vultos.

A mesa posta, era seis da tarde e o céu já estava ficando escuro.
- Mamãe, eu sei chegar até aí sem sair daqui! - gritou Ophelia, a voz excepcionalmente aguda - mamãe, eu sei!
A mãe não respondeu, tão preocupada em fazer o almoço.
Ophelia não ligou. Aumentou seus dedos como aprendera a fazer, aumentou mais e mais até seus dedos, mais parecidos com garras, alcançou as costas da mãe, esta que sentiu um arrepio, se virou e gritou:
- OPHELIA! O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?
A mãe pegou uma faca e cortou os dedos de Ophelia, fazendo a criança chorar de dor. Não era rápida para recolher as garras novas e sentia dor, dor demais ao ter as garras cortadas.
- Sua louca varrida! Podia ter me matado!
A criança lacrimejou, correndo até seu quarto e se recusando a sair para jantar. Suas mãos sentiam a dor de ter as garras cortadas.
Recolheu-se à solidão.


Mas agora não sentia mais dor.
Nada.
Ophelia sorriu, imaginando se a dor que vinha para ela era a mesma para todas as pessoas.

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- Raveneh, desça - Johnny disse - por favor.
- Quero lutar. Me deixa.
- Catherine?
Raveneh o olhou, os olhos azuis tensos de preocupação. Não lembrava Raveneh em nada.
Se Johnny podia se lembrar perfeitamente, os olhos de Raveneh jamais refletiam aquela ira guardada nem eram tão vítreos assim. Eram mais líquidos, doces, arredios. Catherine sorriu, entregando May aos braços de Johnny que nada pôde fazer. Podia até forçar Raveneh a ficar no abrigo, mas forçar Catherine? Sem chance.

Ao lado do abrigo, Johnny pediu para Rafitcha descer com Maytsuri enquanto procurava Catherine e tentava convencê-la a descer ou protegê-la, o que pudesse fazer primeiro. Rafitcha desceu, concordando em levar May. Yohana estava longe, meio que perdida, tentando decidir entre ajudar ou ficar dentro do abrigo.
- Yohana, venha para cá! - gritou Johnny - você não pode ficar aí fora, não sabe lutar!
- Mas... mas... - Yohana chorava, presa pelo desespero.
Os três demônios chegavam cada vez mais perto.

Cinco metros de altura, dois metros e meio de largura.
Os braços, desajeitados, pareciam ser de pedra e as pernas podiam se fazer escutar por toda a região.
Chifres desajeitados de cinquenta centímetros, pontiagudos que podiam perfeitamente matar um bebê caso um deles caísse ali, como uma flecha.
E a língua... língua de vinte metros, repleta de espinhos.

- Para trás! - Umrae gritou, largando a cesta de tomates no chão.
Uma moça muito nervosa teve o cuidado de recolher a cesta de tomates e sair correndo para o abrigo, em alvoroço.
Doceh andou cinco passos para trás, medindo a distância que tomaria para conseguir atingir um deles com seus poderosos dardos de mel. Mas no quinto passo, tropeçou em Yohana, que se ajoelhara sem conseguir tomar qualquer atitude.
- Idiota! - gritou Doceh - vá para o abrigo!

- Hmmm... - a voz era grasnante e baixa - carne adocicada de medo... ADOOOORO.
Era um dos três demônios. Abriu a boca com ferocidade, jogando a língua contra Yohana. E pelo que Doceh percebeu, a língua era a sua espada e a manejava tão habilmente que dificilmente seria derrotado com alguém de pouco nível. Doceh foi jogada para trás só por um soco que o demônio deu na terra, fazendo todos que estivessem a menos de 50 metros dele caírem no chão. Ou seja, praticamente todo mundo a não ser aqueles que estivessem muito perto do abrigo como Rafitcha que voltara para ajudar todos aqueles que recolhiam as cestas das colheitas para não perderem muita coisa.
E mesmo ela parou, horrorizada. Seus dedos deixaram cair a cesta de maçãs pela escadaria, fazendo com que Vinicius tropeçasse em um monte de maçãs e também derrubasse a cesta em que continha olivas, sendo ajudado por uma atrapalhada Amai.
- Você...
Yohana conseguiu se levantar, debilmente, seu corpo já molhado de suor.

Foi tudo muito rápido.
Foi tudo em um piscar de olhos.
Em um segundo, se via a Yohana e o demônio separados por meros... dezessete metros?
No outro, os dois estavam unidos. O demônio não movera um passo, ninguém conseguiu se levantar com os freqüentes socos que os outros dois demônios davam na terra. E Yohana estava presa ao ser, a língua enrolada nela como uma serpente se enrola em uma árvore.

Os espinhos a feriam, fazendo buracos em seu corpo.
E ela continuava paralisada, sem gritar nem chorar. Somente seus lábios entreabertos e sua expressão chocada.
- Yohana! - gritou Fer, enquanto Umrae tentava calcular as fraquezas.

Corpo feito pedra... quanto mais pedra é, mais frágil os pontos fracos...
Empunhou a cimitarra em seu cinto. Dessa vez ela não iria errar, ou iria?
Ly, Fer, Doceh. Poderão me dar perfeita cobertura...
Enquanto isso, Yohana agonizava. Agora fechara os olhos, tentando lembrar de alguma oração, perdida entre os escombros de Ophelia.

A língua se apertou.
O estômago foi atingido, rasgado ao meio.
A agonia de o espinho não atingir as costas de uma vez era simplesmente sufocante. Aqueles espinhos que cortavam a sua pele, atravessavam todas as camadas da pele e feriam os órgãos, arranhando-os, rasgando-os. Mas não iam mais além.
Que agonia, pois Yohana queria logo a maior das dores para ter o maior dos alívios!
E por puro sadismo, o demônio fez questão de fazer com nem os pulmões nem o coração fossem sufocados, somente todos os outros órgãos. Para, pouco a pouco, o sangue se esvair de dentro para fora, causando em uma hemorragia, e Yohana sofrer, devagar, a falência de múltiplos órgãos. Um grito de dor ao sentir a aguda pontada no útero.
- Agora! - foi tudo o que Umrae gritou, e logo todos os outros puderam compreender.

Os dois demônios não se preocuparam com as potenciais vítimas. Se divertiam ao verem Yohana ser rasgada por dentro, e riam, dando socos no chão a todo momento.
Umrae resolveu aguardar o próximo soco, que veio em menos de um minuto, para dar um salto para a frente. Alcançou o terceiro demônio com rapidez e precisão, praticamente aterrisando muito próximo aos pés dele, também de pedra como verificou mais tarde.
- Ly, venha! - gritou Umrae - Fer, cubra Doceh!
Se eu tivesse Kibii aqui... seria tão, tão fácil e idiota...
O coração doeu ao lembrar de Kibii, praticamente a companheira que cobria toda brecha que ela podia deixar e vice-versa. Bem, não cometeria erros e Yohana sairia viva, e os demônios sairiam mortos, certo?

Doceh resolveu aproveitar que o primeiro demônio se entretinha na Yohana, e assim mirou em sua cabeça de forma cuidadosa. Seus dardos de mel eram bem conhecidos, pontudos e maldosamente venenosos. Por puro azar, não havia trago os brigadeiros corrosivos nem o pavê tão mortal, mas não havia problema. Fer cumpriria essa falha com talento.
Mirou o primeiro dardo, e foi fácil demais. Estava parado, degustando o sabor de Yohana com seus espinhos linguais.
O segundo, o terceiro, o quarto foram.
Devia estar sob o efeito, mas parece que ele sequer sentiu...
- Fer, vá de qualquer jeito quando eu lançar o sexto, ouviu? - sussurrou Doceh, ainda tendo a ignorância dos outros dois demônios.
- Ouvi - Fer ficou bem atrás, escondida atrás de uma das pernas.
Droga, ele é alto demais para eu dar mais um salto... e com esses socos idiotas, como vou conseguir ficar em pé?
Mas Doceh conseguia e lançou mais dois dardos de mel, ao que o demônio resmungou alguma coisa.
- Meeerda - grasnou - essas coisas malditas que estão jogando na minha cabeça!
E deu um soco, tão forte que foi a sorte de Fer.

Imaginar uma garota alcançar o ombro de alguém com um mero impulso é uma idéia idiota e ridícula, mas foi exatamente o que aconteceu. Ela era ágil e pequena, de um corpo de adolescente, e de forma tão hábil alcançou os ombros do demônio com facilidade.

Punhal Número Um.
Punhal Número Dois.
- Órfã tola...
Ajeitou os dois punhais diante da cabeça do demônio.
- Matem-na! Ela não é de nada!
E enfiou-os na cabeça. Enfiou-os como se estivesse matando os assassinos de Luck e Joe.
Com sabor de vingança.

A língua parou de se mexer, se desenrolando pouco a pouco.
Yohana gritou de dor. Por incrível que pareça, ela ainda sobrevivia.
- Alguém - gritou Umrae que se adiantou para o segundo demônio com ferocidade - cuide de Yohana!

Rafitcha se levantou, sendo seguida por Tatiih e Kitsune. As três sequer tomaram coragem, sequer pensaram no que faziam, se arriscando em um campo de batalhas. Somente correram até Yohana caída, o demônio caído, abaixando-se a cada vez que o terceiro demônio se enfurecia e corria todo o campo com a sua língua. Era evidente que a língua dele era a maior: Ly calculou vinte e cinco metros.
O segundo demônio se ocupou com Umrae que se aproveitou de um dos socos para dar o impulso, como Fer fizera. De forma feroz, cortou a cabeça com a cimitarra, em um corte transversal que rompeu a cartilagem nasal e os lábios, e ambos os olhos foram separados pelo corte.
- Parabéns! - gritou Fer, entusiasmada - estamos indo bem!
Todos se voltaram para o terceiro demônio, sozinho, enfrentando quatro oponentes, os únicos que preferiram enfrentá-los. Nenhum soldado de Campinas, que lutava nas guerras, se dispôs a enfrentar demônios.
A Capitã Bi, não se podia culpá-la, estava dando uma limpada no navio dela e se manteve alheia à confusão.
Bia estava ferida, isolada no abrigo.
Kibii estava mantida em cativeiro, sendo ferida todos os dias.

Foi complicado, diria Rafitcha dias adiante.
Foi horrível, completaria Tatiih e Kitsune acrescentaria:
- Doloroso demais.

A língua, espinhosa, foi fatiada com grande dificuldade para não rasgar Yohana completamente.
- Yohana, fique acordada! - gritou Rafitcha - não durma!
Tinha medo de que Yohana ficasse insconsciente, e assim morresse, para a dor diminuir. Kitsune pegara uma faca de um pequeno estojo que pegara de qualquer jeito em cima da mesa (se Fer visse qual faca ela estava usando, daria um ataque) e disse:
- Pegue aqui - mostrou o estojo que ainda continha três facas - melhor cortarmos a parte com espinho do que desenrolar tudo de uma vez.
E dá-lhe trabalho duro: as três tiveram que trabalhar cortando espinho por espinho, e de forma apressada, enquanto o terceiro demônio se ocupava de quatro oponentes.

O demônio se avançou, não dando soco nenhum na terra.
Caminhava para as plantações.
- Maldito! - gritou Umrae - detenham-no! Não pode acabar com o que nos resta!
Bem que tentaram.
Mas o demônio prosseguiu, ignorando todo tipo de golpe com sua carcaça de pedra. Moveu a língua em cima da plantação, e simplesmente rasgou todos os pés de milho que havia.
Deu mais um passo, e com as mãos, destruiu a de tomates.

Ly mordeu o lábio inferior.
- Umrae.
- Quê?
- Precisamos de uma isca - olhou para Umrae preocupado, e depois olhou para Yohana.
Uma isca...
Que pensamento cruel.
- Eu vou lá, então - Fer sussurrou.

E foi em frente.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Parte 63 - Delineando o destino com lápis 2B, um rascunho somente.

Ophelia se aninhava em sua cama, descansando como a amiga aconselhara. Um dia sem ter conferência com demônios, um dia sem torturar Kibii, um dia sem ter que agir como rainha... um dia torturante.
Mas aguentaria, afinal tinha que ter alguma idéia. A rotina estava matando a sua criatividade.

Analisou o mapa. Praticamente todos os reinos se curvavam à ela, todos os reinos assolados pelo caos, implorando por um pouco de paz, ordem, algum motivo para as pessoas poderem sair de suas casas sem serem devorados por suspeitos demônios. Ela não ligava.
Não precisava de um mundo de fadas.
Só satisfazer a própria sede de poder e sangue era o suficiente.

Bem, as Campinas não estavam dominadas. E queria aqueles lugares mais distantes, em lugares que nunca foram dominados pelas fadas. A Terra Seca seria um lugar interessante de se dominar, decerto, com aqueles reinos ásperos, arrogantes, de gente tão vulgar e vazia!
Pois bem, quem seria o próximo?

Ophelia queria a garota ruiva. Era alguma espécie de atração, algo que chamava a atenção na ruiva. Como a chamaram mesmo? Não se lembrava... mas tinha que concordar que a ruiva exercia uma espécie de fascínio inocente, o mais perfeito espécime para se torturar. Como se tortura uma criança, e como é delicioso escutar gritos excepcionais de dor...

Mas a garota... a garota estava protegida. Tinha que se contentar com alguém mais vulnerável.
Perguntou-se pela Umrae. Ela seria interessante de se ter, e pelo visto, é extremamente perigosa. Melhor tê-la conosco, afinal porque se arriscar, já que suspeitava que Umrae era uma daquelas raras pessoas de um espiríto de liderança superior, com uma astutez aguda? Não queria se arriscar feio, e pensou em como poderia sequestrar alguém de Campinas.

Mais alguém...
Não conseguia lembrar de nenhum nome. Nada.
Teria que atacar às cegas, então. Ao pé de sua cama, havia várias pastas com vários documentos sobre Campinas. Passou os olhos sobre eles, tentando ver se podia acumular mais algum fato. Sabia tudo sobre as Campinas: história, personagens históricos, guerras, secas, invasões, estações do ano, épocas de colheita e chuva, estiagens, períodos de gripe, peste ou febre da primavera...
Verão. Verão, a época que tinha mais colheitas, não era isso?

Sim.
Tomates, cebolas, alfaces, toda aquela droga de vegetais e legumes. Tudo no verão.
Portanto mais pessoas sairiam, com Ophelia ou não mandando demônios atrás deles, certo?

Simples demais, foi a sua conclusão. E sorriu.

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- Campinas? - Crazy parecia vago para uma ansiosa Bel - é...
- Siim, aquele lugar fantástico ao lado do reino das fadas, a capital, sabe - completou Bel com entusiasmo - e a maléfica Ophelia está querendo acabar com lá! E é aí que a gente entra!
Crazy sorriu. Ficava admirado com o modo como Bel encarava as coisas: uma grande piada. As guerras, por mais trágicas que fossem, para Bel sempre seriam um motivo de diversão. De certo modo a conhecia, desde os tempos que encararam uma escola juntos. Algumas vezes se separaram como na vez que Bel viajou até às Campinas para treinamento militar durante dois anos ou quando Crazy brigou com o seu superior e foi obrigado a partir em uma missão para averiguar sobre os estranhos assassinatos em um pequeno vilarejo ao norte de Grillindor. Mas no mais se esbarravam sempre, nos corredores das bases militares de Grillindor ou nos corredores do palácio. Eram amigos que se divertiam em bares, falando mal dos superiores, e rindo dos novatos que acreditavam em qualquer peça que eles pregassem. E para Crazy, Bel sempre seria a mesma: de cabelos longos e acobreados, os olhos astutos e espertos de um castanho duradouro e confiável, os lábios que tantas vezes delineavam para cima rindo das tragédias, e claro, suas roupas sempre de forma diferente aos demais generais, capitães e militares. Enquanto eles vestiam sempre a farda, de gola alta, Bel preferia usar os charmosos vestidos que chegavam até os pés, sempre feitos de linho ou algodão, e luvas carissímas. Ela não parecia capitã de exército nenhum. Mas no campo, era o próprio capeta. Não para os derrotados, mas para os que se subordinavam à Bel. Coitados dos novatos, então!

- E aí? - Bel sorriu - topa?
- Ora, teríamos que soltar os dragões em cima de Ophelia? - Crazy riu - mas será fácil demais. Não tem algo mais difícil?
- Bem, eu tenho algo difícil - disse Bel, pensativa - primeiro, Umrae deve estar louca porque não tem resposta minha. Achei melhor não enviar, vai que a Ophelia recebe, sei lá? Segundo, como se pode esconder dragões em um lugar que dá para se ver inteiramente pelo palácio do reino das fadas?
- Em reinos próximos? - Crazy sugeriu - quais são?
- Heppaceneoh - Bel jogou um mapa no colo de Crazy, dando-lhe tempo de analisar a situação - tem outros, mas ignore-os. Foram destruídos pelos demônios, pude descobrir.
- E por que não acabaram com Campinas? - Crazy perguntou, percebendo a floresta que era a única barreira entre as Campinas e a praia, e depois o mar.
- Algum feitiço, acho - respondeu Bel - bem, onde você acha que poderia esconder? Não posso simplesmente carregar dragões daqui até Campinas e achar que ninguém vai perceber.
- Claro, seria tolice - concordou Crazy, olhando para Bel - quantos dragões você pretende levar?
- Quantos eu poderia levar? - Bel olhou para as próprias unhas, curtas e simples.
Crazy sorriu.
- A princípio, nenhum - respondeu - acho que dois acabariam com Ophelia com tranquilidade.
- Dei uma pesquisada na biblioteca por aqui - disse Bel - eu sei, fiquei só uma hora, durante o café da manhã, mas enfim. A Ophelia é uma lenda. Relatos contam que ela simplesmente acabou com o reino, não sei quantos anos atrás. Praticamente indestrutível, e na época, era só uma garota de dez anos.
- E como tem certeza de que ela é indestrutível? - Crazy indagou, com leves suspeitas para com aquela lenda.
- Bem, os sobreviventes narram poucos aspectos a respeito. O que costuma aparecer em todos os relatos são as garras que ela possui nas mãos, garras retráteis. Uma hora ela está normalzinha, parecendo uma fada e tudo o mais. Outra hora ela vira um monstro completo.
- Por isso os "poderes" que Ophelia possui não são bem conhecidos? - deduz Crazy, ao que Bel completa inteligentemente:
- Exatamente, porque Ophelia nunca utilizou de todos os seus artifícios usados.
- E pretende provocá-la com dois dragões até ser retalhada?
- Não. Pretendo matá-la de surpresa, sei lá. - Bel pareceu um pouco mais desanimada - não sei a força de Ophelia. Não sei se ela pode se transformar em um demônio completo e derrotar dragões... essa idéia é ridícula, sabe? Mas... não sei, de acordo com as pesquisas, Ophelia foi classificada como criatura inclassificável junto com a Medusa Negra e a Lady Supperie.
- Medusa Negra eu sei que foi aquela maluca que desafiou um dos deuses de Olimpo e nem era a mais poderosa assim. Mas a Lady Supperie? Quem é essa? - Crazy perguntou, erguendo as sombracelhas de forma curiosa. Bel respondeu com um leve sorriso:
- Lady Supperie foi uma doida que nasceu lá nas bandas do Oriente, uma princesa. Apresentava distúrbios de personalidade, problemática, essas coisas. Um dia explodiu o próprio reino em um ataque de desespero, e amaldiçoou todas as famílias dos sobreviventes por cem gerações. Em seguida, matou-se com uma corda, depois de transferir todos os poderes para os espirítos.
- Uau.
- Bem, preciso saber logo - Bel adiantou a coisa - quer ou não quer entrar na missão?
- Claro - riu Crazy - como desperdiçarei a chance de você lançar seus xodós para se sujarem com o sangue de demônios?
Bel riu de uma forma um tanto sarcástica e verdadeira. Sim, seria uma oportunidade única na vida!

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Raveneh colocou a panela fumegante no meio da mesa, agradecendo por nenhuma plantação ter sido destruída, apesar de ter os demônios logo ali, tão perto. Ainda havia comida, ainda bem!
- Precisamos estocar comida por agora - lembrou Maria - Umrae, poderia vigiar o estocamento de alimentos?
- Quê? - Umrae estava vaga, e encarou Maria com algo que lembrava certo despeito - desculpe, não. Estou ocupada em coisas demais.
Maria fez um muxoxo.
- Compreendo... Gabriel, coma tudo o que está no prato - disse para o filho que fazia festinha com o purê de batatas - sim, o couve deve ser comido, querido.
Raveneh se sentou à mesa, juntamente com Tatiih, Rafitcha e Thá, que dividiram as tarefas domésticas de manhã.
- Ninguém sabe algo da situação? - perguntou Ly ansioso, olhando para Umrae. Ela lhe parecia aérea demais...
- Não - confessou Maria - isso está me deixando louca... Não tenho nenhum informante no palácio...
Umrae encarou seu prato sem paciência. Não estava com muita fome, e realmente detestava esse tipo de situação em que seria cobrada de alguma coisa...
- Bel mandou alguma resposta, Umrae? - perguntou Ly.
Sabia que iam me perguntar isso.
Umrae respondeu delicadamente:
- Não. Espero que mande logo.
Maria passou a língua entre os lábios, preocupada:
- E se ela recusar a ajuda? O que faremos?
- Não sei - Umrae mirou os olhos dourados na travessa de salada - não sei.
- Bem, vamos agir como se Bel aceitasse ajudar a nós - Maria sorriu - então você pretende guardar dragões onde?
- É possível os escondermos na floresta - imaginou Amai, tentando se fazer de útil - ela é grande e as copas das árvores impossibilitam qualquer maneira de Ophelia enxergar o que há dentro da floresta, ao contrário da praia e das Campinas, que são campos abertos.
- Ela tem razão - concordou Doceh.
Todos ficaram em silêncio por um tempo, e ninguém quis falar.
Cinco minutos só comendo e pensando, em que se arranhava o garfo no prato e não se pedia sequer mais arroz ou mais salada.
- Obrigada pela refeição, meninas - disse Nath - bem, está na hora de Bia comer. Vou arranjar o prato para ela, por favor, me dêem licença.
Nath se levantou, preocupando-se em montar o almoço de Bia: salada, arroz, um pouco de carne.
- Estou indo lá.
Ela se retirou da sala de jantar, deixando todos se entreolharem. O fato de Nath cuidar de Bia fez todos lembrarem do que ninguém queria saber: se Ophelia conseguiu acabar com Bia, que seria deles, muitos deles que não sabiam muito bem lutar?

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- Bia? - sussurrou Nath, pousando a bandeja na mesa ao lado da porta.
Bia não estava na cama.
Estava de pé, tentando se lembrar de como era o primeiro passo para o treinamento, a sequência de passos, a força ideal para golpear. Sua espada se agitava para frente e para trás, e os seus passos eram perfeitos. Ela não esquecia de nada.
O ritmo era o ideal.
Seus pés se agitavam velozmente, sem perder nada.
- Bia, está conseguindo lutar! - aplaudiu Nath, feliz.
- Não - Bia parou de treinar, deixando a ponta da espada tocar no chão - tem algo que falha.
- E o que é este algo? - Nath perguntou, já se entristecendo. Seria uma mostra da quebra de confiança em si própria?
- Não é o suficiente para acabar com a Ophelia.
Bia sentou-se na cama, sem soltar um murmúrio de dor. Nath lhe entregou a bandeja, dissendo que não importava que ela estivesse bem, ela tinha que continuar tomando os remédios, o que Bia aceitou sem reclamar.

Nath voltou até a sala de jantar, onde levava o remédio de Amai. Ela havia recuperado bastante bem em poucas horas, o suficiente para se levantar e ir almoçar com os outros. Mas mesmo assim, ela não podia esquecer de tomar o forte chá que recuperaria.
- Amai, terminou de almoçar? - perguntou Nath em toda a sua posse de enfermeira durona, seus olhos verdes mirando os cabelos ruivos e uma expressão cautelosa.
- Err - Amai olhou para o prato já vazio - sim.
- Pois bem, venha tomar seu chá - Nath lhe entregou uma xícara cheia pela metade, com o mesmo chá que Rafitcha lhe dera quando acordou - e tome tudo, e venha repousar na cama. Não é porque você se sentiu bem o suficiente para vir aqui que deve se descuidar. Sua febre pode aumentar.
- Urgh - Amai reclamou, bebendo o chá.
Forte demais.

Em seguida, Amai teve que se despedir do pessoal e ir para o seu leito, na enfermaria. Resmungando, é claro, porque não havia nada de interessante que pudesse fazer na enfermaria. Preferia ficar com os outros, trabalhando duramente para colher o máximo que pudesse antes dos demônios virem atacar de uma vez.

- Sua sobrinha é forte - Doceh disse para a Kitsune - ela teve uma febre altissíma durante a madrugada e já está de pé, almoçando com a gente. Impressionante!
- Ela sempre foi assim - Kitsune sorriu levemente - forte como um touro, devo dizer.
Raven ficou calado. Não contara a ninguém sobre onde encontrara Amai, achando melhor assim, era mais prudente e sensato. Se contasse, provavelmente Amai ficaria cercada, sem poder sair, e com certeza, concluiu Raven, iria ser ali que Amai enlouqueceria de uma vez por todas. Enfrentando a culpa de ter ferrado Kibii, e ser cercada sem poder ver a luz do sol, ela que se tornara dependente desse tipo de contato...
Não, melhor não.
Que todos achassem que Amai foi achada com febre quando acordou meio sonâmbula, bebendo água ou qualquer coisa do tipo e ele a encontrou quando estava voltando de sua tarefa que durara um pouco mais de tempo. Afinal de que outro modo poderia colher flores que só abrem à meia-noite?

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Foi Siih quem encontrou Gika.
Ela forçou a porta e deu um grito de surpresa.
Não chorou, nem reclamou. Não ficou chocada, mas somente a surpresa do imediato que foi tudo o que Siih se permitiu sentir. Mas ela chamou alguns Glombs e todos eles, alvoroçados com o cheiro da morte, arrumaram o quarto de Gika e levaram Gika para outro quarto, e dali, Siih procurou Lala. Ela estava conversando com um demônio de forte cheiro, olhos amarelados e corpo lembrando uma gigantesca serpente.
- Que é? - Lala perguntou, irritada.
- Desculpe-me interromper - Siih olhou para o demônio, cujas feições eram levemente femininas - mas aconteceu uma emergência.
- De que tipo? - Lala encarou Siih da forma mais dura que podia encarar. Mesmo assim Siih não se abalou:
- É particular.
Lala suspirou, exclamou um "me perdoe, Ravèh" e saiu do aposento. Ao saírem, Siih lhe deu a notícia:
- Gika se matou.
- Como assim? - Lala ficou branca feito neve, temerosa com a possibilidade de algo no plano sair errado. Se Gika se matou para não trabalhar para Ophelia, então... quantos teriam a mesma coragem? Lembrou-se de Vê na mesma hora. Ela não queria ceder as poções, ela era uma criminosa, e ela era amiga de Gika, amiga leal desde os tempos de colégio...
- Se matou. O que fazemos? O que faremos com o corpo dela? - perguntou Siih, parecendo desesperada em seu íntimo. E Lala farejou o cheiro de medo na rainha escravizada.
- Fatie, asse, jogue um tempero e sirva de almoço para Ravèh. Ela adora carne de fadinhas estúpidas - Lala sorriu levemente e voltou à reunião com o demônio, deixando uma Siih estupefata.

Siih voltou à sala onde Gika repousava o destino como morta.
- Então, o que faremos? - perguntou Lefi que já estava lá, guiado pelos boatos de Glombs.
- Não podemos enterrar, cremar, deixar aqui - Siih mordeu o lábio inferior, de raiva - aquela idiota disse para fazê-la de comida para um demônio idiota!
Ela estava à beira de lágrimas, suas mãos quase rasgando a saia do vestido de tanta ira. O que Lala estava pensando? O que Ophelia estava pensando? Como podiam fazer isso? Gika fora sua súdita, caramba, sua escrava, praticamente! Gika foi quem a acompanhou no caso do rei Mo de Heppaceneoh! Gika estava junto com Vê, Gika tão atenciosa, cuidadosa! Como podia simplesmente oferecer a carne dela para um demônio?

- Irmã, não se cobre demais - pediu Lefi, preocupado.
Se Gika conseguiu manter suicídio, que dizer de Siih? Pode ser que Gika pudesse ser mais fraca, não aguentando a pressão, e assim aceitando sair do jogo por conta própria. Mas esperava que Siih fosse como foi durante toda a sua vida: forte, insistente, em suma, uma chata que não aceitava perder. Mesmo rebaixada na realeza, iria em frente, querendo um pouco de glória para si. Gritaria, berraria, espernearia. O que fosse preciso para matar Ophelia.
Mesmo que não desse para envenenar Ophelia, pois ela era imune, ainda assim ela iria cair.
Só esperasse um pouquinho... até chegar aqueles que queimam.

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As cestas de tomates, batatas, alfaces e milhos ficavam cada vez mais cheias. Era tudo dobrado e até mesmo quem não costumava trabalhar muito nas plantações como Umrae que se dedicava mais aos estoques de venenos, armas e tecidos, trabalhava duramente. Fer parecia mais depressiva, mesmo que seu ritmo na colheita estivesse absurdamente acelerado. Mas a sua depressão vinha desde o dia que Kibii foi mantida presa no castelo, e ela sentia a falta da amiga, com quem costumava treinar, de vez em quando.
Nath preferiu trabalhar dentro do abrigo, mesmo que ficasse agoniada pela falta de ar livre. Yohana, por sua vez, estava lá fora. Seus cabelos loiros estavam presos em um coque mal ajeitado, e ela ajudava Johnny a colher tomates.
- Não é assustador pensar que todos estamos fora aqui, cercados por demônios? - indagou Rafitcha para Raveneh, enquantos ambas ajudavam nas batatas.
- Sim - Raveneh concordou - mas eles não vão entrar aqui, certo? Tem um feitiço, não?
- Não acho - Rafitcha lembrou - lembra do que Bia falou do Encanto?
- Lembro... - Raveneh parecia pensativa - de que era uma farsa. Bem, podemos ser invadidos de qualquer jeito então.. como Bia está?
- Perfeitamente bem no que se trata de aspectos físicos - Rafitcha respondeu - mas a sua confiança foi quebrada de um jeito quase irreparável.
- Coitada - Raveneh suspirou. Maytsuri bocejou, a cabeça pousada no seu ombro.
- Mas como podia ser diferente - o tom que a amiga usava era diferente: mais grave que Raveneh vira poucas vezes, como na vez que Rafitcha lhe contara sobre a Terra de Gelo - Bia estava tão confiante que ia acabar com Ophelia, ela estava tão furiosa, irada... e Ophelia vai lá e simplesmente acaba com ela, como se Bia fosse uma iniciante, como se Bia nunca tivesse empunhado uma espada... tão fácil!
- Entendo - Raveneh suspira outra vez e logo volta o olhar para a frente, em direção à Heppaceneoh. De tão longe, podia ver a torre do palácio de Heppaceneoh.
Onde servira de espiã e depois trancafiada pelos nortistas.
Raveneh, acho melhor você voltar para o seu abrigo.
- O que é aquilo?
Raveneh, isso não é legal...
Dois ou três vultos que se destacavam entre as casas abandonadas das Campinas.
Raveneh, dê meia volta, você está protegendo a minha filha também!
Vultos bípedes, de garras nas mãos.
Raveneh, me escuta! Ou esqueceu que eu sou mais prudente que você?
De olhos rasgados. De íris negras. De dentes afiados e grasnantes.

- Oh - Rafitcha começou - My - Rafitcha pegou na mão de Raveneh - God.
Primeiro ataque.
A elite foi em frente.
Raveneh ficou para trás.
E Catherine gritava em seus ouvidos para fazer o que alguns faziam: ir para o abrigo. E ela tinha Maytsuri que acordou com os gritos.

Como eles são tão feios!, foi o que pensou Maytsuri antes de chorar.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Parte 62 - Duas amigas entregues.

- Não vai sair daqui! - Catherine estava a beira de um ataque de nervos - você vai enfrentar Ophelia, sua louca, tudo isso por?
- Por Olga! - protestou Elyon.
A atmosfera no estranho castelo estava completamente irrespirável. Elyon anunciara sua partida pouco antes das onze da manhã, o sol já banhando o jardim lembrando que deviam sentir calor. Louise murmurou qualquer palavra de desprezo, Loveh e Sunny se chocaram. E Catherine tentou proibir a amiga de ir.
- Olga? Olga se sacrificou para manter a gente viva e você vem e diz que vai morrer por ela! - Catherine lembra, seus cabelos esverdeados caindo sobre os ombros - qual é a sua intenção? Ajudar as fadas?
- Exatamente! - Elyon parecia completamente diferente do que era. A idéia de "ajudar as fadas" fugia completamente da personalidade de Elyon. Não fazia sentido, mas o que fazia sentido quando se tem uma louca psicopata querendo assassinar umas inimigas de infância?

Catherine moveu o pé direito para a frente.
Elyon respondeu recuando com o pé esquerdo.
Miih pousou a mão no punho da espada, temendo a hora que tivesse que separar as duas.

- Então terá que lutar comigo - Catherine não ofegou. Ofegar não fazia o tipo dela.
- Está bem - Elyon recuou com o pé direito também, ficando completamente ereta - e quais são as condições?
- Se vencer, vai embora. Se perder, ficará aqui - Catherine foi muito simples.
E isso doeu.

Doeu demais para desferir o primeiro golpe.
Pois quem golpeou primeiro foi a Catherine que utilizou exatamente a mesma espada que usara ao lutar com Ophelia, semanas atrás.
A espada de rubis e esmeraldas e safiras.
A espada que rompeu a pele, encontrando as veias e artérias junto à cintura, do lado direito. Elyon se curvou sobre o próprio corpo, apertando o ferimento com força. Parecia paralisada, chocada como se nunca tivesse acreditado que a amiga seria capaz de tal ato.

- O que acha? Continua me achando incompetente para você? - Catherine riu - levante-se, Elyon. Não quero que você morra.
Elyon não ligou, olhando para a sua mão suja de sangue.
Mas o machucado não doía. Somente existia em seu vazio, causando aquela estupefação tão natural.
- Machuquei muito? - Catherine se ajoelhou diante da amiga. Ainda que fossem inimigas por breves instantes, todo aquela ternura não podia ser esquecida.
Catherine deu a mão e Elyon a pegou.
E as duas se apoiaram.

Amparadas na lembrança já romanceada de Olga.

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- Bom dia, Lala - Ophelia parecia calada.
Sem querer conversar. Não penteara os cabelos com tanto avinco. Não escolhera o vestido mais bonito.
A Lala, Ophelia parecia ter um péssimo dia.
- O que houve, Ophelia?
- Nada.

Nada. Pois Lala sabia.
Era só a sensação de estar sendo derrotada.
Derrotada porque um ser pertencente à raça dos elfos se recusava a abrir a boca, por mais que o corpo doesse.

Então Lala aconselhou a Ophelia a ficar em seu quarto, descansar. Não iria fazer nada.
Cuidaria das correspondências, das alianças que fazia para que os outros reinos não fossem atacados, dos criados, de manter o império que existia há anos e anos.
Mas ela descansaria, durante um dia. Pensaria, maquinaria planos. Para derrotar Kibii.

Lala sabia, mas fingia não saber.
Ophelia não sabia, mas fingia que isso não importava.
O fato era: Kibii era impossível de se derrotar. Afinal, desde quando o silêncio dá para se derrotar com mero barulho?

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Kibii desabou no chão.
Pulsos marcados pelas cordas, marcas feridas.
Os tornozelos apresentavam situação idêntica, e o corpo tentava se recuperar das: queimaduras, cortes, arranhões pelas garras de Ophelia.
E de novo a água fria que lhe deveria causar desconforto, a água mais gelada que já sentira.

Pelas histórias que Rafitcha e Maria lhe contaram, a água mais gelada que podia se sentir era na Terra de Gelo, para onde os banidos pelo Rei Mo iam, sofrer pelos erros que pagaram quando viviam em Heppaceneoh ou em seus arredores. Só que nunca imaginara tal frio assim, tão congelante.

Seus dentes doíam ao beber tal água, e achava que ia morrer de hipotermia. Ou qualquer coisa do tipo.

- Querida, hoje me contará algo?
Era a voz de Lala. Ela lhe parecia indiferente, como sempre, de olhos cor-de-mel sempre vazios e cabelos sempre soltos. Cansara-se de manter alguma expressão, pois já não sentia mais nada. Nem mesmo pavor.
- Aquela vadia não vai vir trabalhar hoje? - alfinetou Kibii sem nem pensar duas vezes antes de controlar a própria língua, mas Lala sequer se incomodou.
- Ophelia precisa descansar - respondeu solenemente - e não precisa se preocupar com ela, afinal ela vai voltar a dar uma atenção especial a você amanhã, não se preocupe.
- Por mim, ela morria de hoje - rosnou Kibii friamente - ela não faz falta nenhuma.
- Que tolice.
Lala se levantou. Ela não tinha vontade nenhuma de manter uma tortura por minutos a fio, e talvez por isso que Kibii tenha ficado tão aliviada. Era recompensador passar um dia sem ser chicoteada, queimada, arranhada, cortada ou qualquer coisa assim. O próximo golpe seria cortar os seus cabelos, de acordo com algo que Ophelia deixou escapar.

Kibii não duvidava nada que virasse uma verdadeira besta-fera caso seus cabelos fossem cortados.

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Gika tentou respirar. Não conseguia achar uma brecha para se comunicar com Vê, afinal Ophelia não lhe permitia mais sair do castelo.
Nem sabia para onde tinha ido as outras telepatas.

Trancou-se em seu quarto, sabendo que poderia ser chamada se Kibii permanecesse sem falar nada do jeito que estava. Covarde. Covarde, covarde, mil vezes covarde. Multiplicava-se a sensação, potencializava como naquelas aulas de matemática.
A sensação de covardia, de sujeira.
E a péssima sensação de nem conseguir servir à Siih. Desistiu.

Como faria? Havia feitiços em todo o palácio, dificultaria qualquer coisa. Mas uma maneira havia, só queria que Vê soubesse antes.
O sol sorriu mais ou menos, de forma irônica. Ela bebeu seu chá frio trêmula, achando que era uma péssima ocasião. Mas quando, afinal das contas, tinha uma ocasião boa?
Chá frio, feito de má forma. Provavelmente por Siih, afinal Lefi não era tão ruim assim na produção de chás. Desceu até a despensa, onde tinham todos os mantimentos de todas as comidas e bebidas para o reino. Gika, de vestes brancas e douradas, se destacando na multidão que vivia tão ocupada, trocando lençóis, cozinhando cafés da manhã, encerando chãos, espanando estátuas!

- O que quer, Gika? - perguntou Alicia, que procurava cenoura para o almoço do dia.
Gika teve que parar para pensar.
- Preciso dormir - balbuciou Gika sem querer sem entendida por Alicia. Ela nunca ia deixar que uma "colega" pegasse ervas, de qualquer gênero. Mas a Alicia somente disse:
- Estão em categorias, Gika. É só procurar direito.

De fato.
Pegou várias de todas as categorias, ignorando somente as que tinham propriedades curativas.

Sozinha, preparou o chá.
Tinha um gosto intragável, de tantas ervas misturadas e mal-cortadas.
Suas lágrimas não paravam de descer pelas bochechas.
Não parava de pedir desculpas à Siih, à Vê e ao Reino por tal traição.
E várias vezes encheu a xícara até a borda e bebeu tudo.

Não demorou muito, sinceramente. Doeu demais, mas demorar nem tanto.
Ela desabou no chão, sentindo tudo formigar. Os dedos, as unhas, o couro cabeludo, as solas dos pés, as canelas, a virilha, tudo, tudo. Formigava, coçava, desandava. A garganta enjoava repetidamente, e várias vezes ela se controlou pra não vomitar no caro tapete. Tudo se tornava enjoativamente verde, e Gika teve que se deitar para se sentir melhor. Apertou a própria barriga para aplacar a terrível cólica que assumira seu abdomên, olhou para os pés da cama.

A porta. Algumas coisas na mesa.
O tapete.
Os cabelos negros espalhados pelo chão, esquecidos de viver.
E a brancura de Gika se tornou ainda mais branca, quase azul de tão fria.
Os olhos dela vidraram acima, admirando o trabalhado afresco de equinócio de primavera no teto. Os olhos dela viraram vidros.

E seu coração parou de bater, devagar e de forma irredutível.

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Elyon havia começado a viajar. Catherine lhe acompanhava com preocupação, e Sunny havia dito que iria alguns dias depois, se ainda quisesse. Mas o resto preferia ficar no palácio, esquecendo de Ophelia pouco a pouco.
Loveh mandou abraços.

- Acha que Ophelia nos sentirá? - perguntou Catherine, como se tivesse dúvidas.
Elyon preferiu não responder. Seus olhos viram as árvores com desinteresse, querendo ardentemente chegar ao palácio, entre os cômodos, onde Ophelia repousava. Queria matá-la.
Por que estava fazendo isso mesmo?
- Onde estamos?
Catherine perguntava mais uma vez.
- Não sei, Catherine - respondeu Elyon.

Estavam nervosas. Por que não estariam? Estavam em uma situação complicada, partindo para o completo desconhecido, um provável suicídio.

Naquele ritmo, calculou Elyon em seu íntimo, demorariam sete dias. Disse a si mesma que teriam que apertar o passo várias vezes: detestava a estranha floresta que se adensava cada vez mais ali...

A floresta lhe era insuportavelmente fria.
- Hey, Elyon, pare de reclamar - gritou Olga - é neve! Neve!
- Sua doida varrida - resmungou Elyon - está frio, vai ficar doente.
Olga só riu, zombando da amiga. Ela deu aquele sorriso de canto e sumiu entre as árvores, reaparecendo em seguida.


- Elyon?
A floresta lhe parecia igual.
- Elyon?
As árvores, as flores, a grama, os galhos... tudo igual, tudo como naquele dia...
- Você está me ouvindo?
Como naquele dia perdido, entre tantos dias de inverno, quando ainda não havia nada daquele papo de musas, quando ainda eram amigas inexperientes...
- Catherine?
- Ah, me ouve! - Catherine sorriu, colocando o cabelo para trás - vamos. Você ficou dispersa aí...
- Ah... - Elyon deu um leve sorriso, quase desanimado - desculpe.
Elas continuaram o caminho.
Em sete dias, foi o que Elyon calculou?

Sim, apertariam o passo...

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Já se passou vários dias. Lala ainda não veio.
Isso era algo bom, certo? Vê encarava os frascos da perigosa Poção de Melina com medo, seus olhos agitados. Havia roído todas as unhas, e seu nervosismo havia se triplicado.
O que faço com isso?
Poção de Melina não era algo que ela simplesmente vendia. Ela nunca vendia esse tipo de poção.
Era somente alguns resquícios que restou do antigo chefe do crime, e ela havia escondido.
A poção que garantia a obediência.

É cruel demais...
Vê mordeu os lábios, encarando os frascos.
Dez frascos. Daria para envenenar exatamente mil banquetes.
Garantiria a obediência até...
Até esquecerem que Ophelia não é a Rainha de verdade...

A mentira, quando contada mil vezes, se torna uma verdade. Onde foi que ela ouvira isso?
Era isso que Ophelia pretendia, então.

Ser obedecida com encantos.
Por todos, de forma incondicional.

O próprio tempo lhe garantiria a realeza...

Vê olhou os dez frascos novamente. Perguntou-se onde Gika estaria. A amiga sumira nos últimos tempos. Também se perguntou sobre a própria família, que vivia no norte do país. Com toda a certeza, fora toda assassinada pelos demônios de Ophelia.
Seus dentes rangeram.

É isso que ela quer, não é?
A porta fechada.
Ela pediu por isso, não foi?
A mesa e os dez frascos em cima, aguardando a vinda de Lala.
Ela matou aqueles que me amavam, não era?
Virou a mesa.

Suas mãos se feriram com o choque de derrubar uma mesa, dez litros de uma poção dourada, aguada e com cheiro de ouro se derramou pelo chão. Dez frascos de Poção de Melina quebrados. Vê sorriu.
Ela acabara de desperdiçar a maior fortuna que Ophelia jamais vira.

Qual era a saída que lhe restava agora?
Ophelia, provavelmente, esqueceu-se de mim?
Fugir? Para onde, com os demônios encarnando a Apocalipse?
Está um dia bonito.
Ajeitou os cabelos, não ligando para a poção derramada. Logo evaporaria.

Isso sempre acontecia. Rara demais, frágil demais.

Vê sorriu para a porta, e embora ela não conseguisse pensar muito bem no que estava fazendo, teve toda a capacidade de se pegar um dos cacos de vidro, um entre os inúmeros cacos pontiagudos, cortantes, perigosos.
Foram dois gestos. Tão decisivos, tão simples, tão indolores.

As veias dos pulsos se abriram.
E Vê riu, imaginando a expressão de Ophelia quando soubesse que aquele precioso líquido se perdera. Só haveria o seu sangue sobre os resquícios do ouro da obediência.
Somente.

Que peça iria pregar!