- Rafitcha está demorando – Raveneh murmurou, preocupada.
- Mas ela só saiu faz uns cinco, seis minutos – disse Tatiih – e a mulher nem terminou os sorvetes... Deve estar voltando...
Raveneh mordeu o lábio inferior. Sabia que acontecera alguma coisa, mesmo que o tempo não fosse demais: como observara Tatiih, Rafitcha estava dentro do tempo dela. Mas Raveneh sentia que ela demorava, que acontecera algo de ruim. A barriga pesou por um instante.
- Ai. Ai, Jorge, o que fez agora?
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Rafitcha não se deixaria abalar por tão pouco, embora a correnteza a impedisse de pensar direito. Debateu-se, estranhando estar tão vazio, já que ninguém reparara em alguém se debatendo no rio. Foi jogada para trás, a cada tentativa de parar em algum lugar. A cada rocha ou tronco que via, tentava se segurar, sem sucesso.
Maldição pensava louca da vida. Já eram umas quatro da tarde, o sol começou a descer e o frio estava começando a penetrar no corpo de Rafitcha.
O rio era fundo, e seus pés não alcançavam o chão. O vestido ficou pesado, e começou a mexer os pés violentamente, sempre se arrastando para a esquerda, a margem oposta a que estava.
Conseguiu se segurar em um galho, a água passando pelo seu corpo furiosamente. Ofegou. Com muito sacrifício, se apoiou na terra, seu cabelo fazendo pingar a água.
- Ah – gemia – ah.
Reparou que a distância entre uma margem e outra era descomunal. Deve ser o Rio de Ouro que Raveneh falou, quando víamos para cá... o rio que mata a sede com sua água e a fome com seus peixes por todo o país... Tentou respirar mais um pouco, a água formando a lama com terra. Esse lado é triste reparou Rafitcha. Sim, de fato: a margem direita era imponente, com uma bela arquitetura e ruas pavimentadas. Mas essa margem era suja, de terra batida pra todo canto e a feira era em um estado tão deplorável que sinceramente Rafitcha não compreendeu como alguém podia comer algo que viesse dessa feira.
- Não morreu ainda? – era a mesma voz que ouvira antes de cair n’água. Recuou, assim poderia lutar um pouco antes de cair no rio novamente.
Afastou o cabelo do rosto, os lábios tremendo de frio, o vestido sujo de lama, gravetos presos no cabelo. Eu não devo estar muito apresentável... mas não é hora de pensar nisso...
- Mas logo acabará seu sofrimento – o tal homem riu. Rafitcha recuou mais uma vez, a energia lhe faltando. Não costumava chorar, mas estava com vontade agora. Mas não ia ser agora que demonstraria tal fraqueza. Mordeu o lábio inferior, não percebendo que as pessoas pararam para observar a cena que se desenrolava entre a moça suja e molhada e o cara forte com cara de mau.
- Quem é você? – Rafitcha tentou ganhar tempo.
- Não te interessa – o homem disse – só interessa que você atrapalha os negócios do chefe.
Rafitcha deu mais um passo pra trás, tentando pensar rapidamente: quem seria ameaçado por ela? Quem acharia que Rafitcha prejudicaria? Quem? Não conhecia ninguém naquele país!
Jorge
- Você não vai conseguir.
- Veremos.
Ele chegou mais perto, sem Rafitcha revidar: pois ela tinha um plano. Reparou que sua face era grotesca, com uma cicatriz avermelhada atravessando o olho direito, o nariz grande e aparentemente quebrado, a boca se contorcendo, os olhos pequenos e de alguma cor que Rafitcha não conseguira definir.
Girou o corpo, ficando de costas para o rio. O homem riu, percebendo que poderia acuar Rafitcha novamente e depois joga-la no rio.
Mas Rafitcha era mais esperta.
- Quem manda em você? – perguntou.
- Isso não te interessa, mocinha – o homem respondeu.
A garota respirou fundo. Não estava dando certo, teria que ousar. Nem que fosse preciso matar o cara depois.
- Então Jorge pagou quanto a você? – deixou a pergunta no ar, categórica, como uma afirmação. Pagaria pra ver.
- Ah, um bom dinheiro! – o homem respondeu, aos risos. Mas logo seu riso se desfez e uma expressão confusa apareceu – err-- do que está falando?
Rafitcha sorriu, vitoriosa:
- Há-há.
Na hora H, em que o homem se atirou para a frente, ela deu um passo para a direita. O homem foi parar direto no rio...
Porém ele não era idiota, e puxou Rafitcha para o rio, pegando na ponta do vestido dela, o que a faz cair.
Merda! e olha que Rafitcha tem uma mente muito limpa! Estranhamente a correnteza deve estar mais fraca, e o sol começou a descer. Estava ficando frio.
Se segurou nos galhos, se debatendo para não ser afogada pelo homem que persistia em pé Maldita parte rasa!
- Morra!
- Nem morta! – gritou Rafitcha, não sacando a ironia na frase.
As pessoas começaram a se amontoar na beira do rio, sem saber se deixavam os dois se matarem ou se separavam os dois. Mas quem iria mergulhar no rio, arriscando morrer afogado?
- Ah – ofegou Rafitcha quando finalmente conseguiu jogar o homem pra trás, fazendo ele cair na parte funda – ah-ah.
A água batia no seu corpo, gelada. Seus cabelos estavam absolutamente desarrumados, o vestido colando na pele. Tentou respirar mais uma vez, concluindo com alívio que o homem fora levado pela correnteza e simplesmente resolveu não ir contra a corrente.
- Quer ajuda, mocinha? – perguntou uma mulher, dando a mão.
Rafitcha sorriu.
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- Ela está demorando demais – Raveneh murmurou – vamos até lá.
- Está bem – disse Johnny.
De fato a demora era absurda: transcorrera uma hora e nada da amiga voltar!
Raveneh encontrou a cabana que vendia sorvetes, logo em frente ao rio. A mulher estava começando a fechar a simples barraca, e logo Raveneh percebeu que Rafitcha não estava por ali.
- Johnny – começou, a respiração falhando – Rafitcha sabe nadar?
- Um pouco – Johnny respondeu – por quê? Peraí... você está achando que ela caiu nesse rio? Mas... como?
- Ela é um perigo para Jorge – pode não parecer, mas Raveneh raciocina rápido e sabia desde o começo o que significava a vinda dela e o que Jorge realmente queria. E agora se lamentava por não ter avisado os amigos – ele percebeu que ela podia vencer. Ai, céus, e agora? Rafitcha não conhece essa cidade, e as pessoas daqui são traiçoeiras... Será que ela está bem?
- Perguntemos para a mulher – Tatiih disse, apontando para a mulher na barraca – ei, você...
- Sim? – a mulher sorriu, mostrando sua falta de dentes.
- Você viu uma moça de cabelos castanhos e... ela estava usando um vestido azul-escuro...?
- Uma moça de olhos castanhos? – a mulher ficou com a expressão pensativa – que pediu o quê?
- Manga, chocolate, morango...
- Sim – interrompeu a mulher – ela veio aqui, pediu. Fui fazer, voltei, ela já não estava mais aqui. Achei que tinha cansado de esperar, mas só demorei uns dez minutos...
- AiMeuDeus – Raveneh quase chorou – AiMeuDeus, e agora?
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- O-Obrigada... – Rafitcha suspirou – obrigada...
Seus lábios tremiam por causa do frio que sentia, apesar de estar embrulhada em uma manta, enquanto o vestido secava.
- Não tem de quê – disse a mulher. Ela era alta, as feições amáveis – qual seu nome?
- R-Rafitcha – respondeu, se contendo pra não chorar de alívio e preocupação. Não conhecia nada daquele país, como voltaria para a pensão? Como diria aos amigos que estava bem agora?
- Eu me chamo Kitsune – disse a mulher – eu moro com a minha sobrinha, Amai. Ela vai chegar logo.
- Kitsune e Amai... – Rafitcha sorriu – parecem nomes orientais.
- Sim, e são – respondeu Kitsune, com um ar de tristeza – nós viemos do Oriente, até todos os meus irmãos e pais morrerem em uma terrível tragédia. Mas pude salvar Amai, na época, com oito anos de idade. E aí passamos a viajar, e começamos a morar aqui.
- Eu tenho a impressão de que vocês não são humanas... – Rafitcha soltou, mas logo se calou, constrangida. Perguntar sobre a origem de alguém é meio como um tabu naquele país, fato que Raveneh a prevenia constantemente.
Kitsune sorriu:
- De fato, nós não somos completamente humanas – meus avós paternos eram humanos puros, mas a minha avó materna acabou se apaixonando por um meio-elfo. Ou seja, tem alguma magia élfica no nosso sangue. Mas somos consideradas humanas por aqui. Minhas orelhas sequer são pontudas!
- Interessante – Rafitcha não falou mais nada. Era o suficiente e não queria invadir a privacidade da mulher que a acolhera.
Escutou a porta bater.
- Tia! – era uma voz de garota.
- Estou aqui! – Kitsune disse. E virando-se para Rafitcha, disse: - Amai chegou. Ela é um doce de garota, você verá.
A garota chegou à sala, onde viu Kitsune e Rafitcha, sentadas, uma de frente a outra. A garota franziu os olhos, visivelmente intrigada.
- Amai, essa é a Rafitcha. Rafitcha, essa é a Amai – apresentou Kitsune.
Rafitcha reparou que Amai tinha as feições amáveis, até mais do que a tia. Seus olhos tinham um verde espantoso, um verde muito vivo com os cabelos ruivos e ondulados arrumados em um rabo-de-cavalo. A sua roupa era de estudante: a saia pregueada, azul-marinho, a camiseta branca com um casaco simples e azul-marinho. A meia-calça branca, os sapatos de boneca pretos.
- Prazer, Rafitcha – Amai disse – vejo que conheceu a minha tia. Bem, de onde você é?
- Campinas – Rafitcha respondeu – err...
- Já ouvi falar – Amai sorriu – dizem que é um lugar fantástico. Então porque está aqui, em um reino tão simples e triste?
Rafitcha hesitou antes de contar. Será que faria bem contar a verdade?
- Bem, eu vim porque uma amiga minha vai ser julgada - de qualquer modo, nada disso é segredo - e eu sou a advogada dela.
Kitsune se intrigou:
- Então por isso que tentaram lhe matar?
Ela é perpiscaz... Rafitcha ficou calada. Mas quem cala, consente e Amai perguntou:
- Quem acusou a sua amiga?
- Jorge.
- Jorge? Jorge Liptene? Aquele cujo pai era da oposição, a mãe...
- Jorge Liptene? Não sabia que o sobrenome dele era esse... mas se bem me lembro, era o nome de solteira dela.
- Ele teve nove ou dez irmãos – Amai disse – uma das filhas de um dos irmãos dele estuda no mesmo colégio que eu. Ela se chama Mary Jane e odeia o tio, diz que é muito arrogante e não mede esforços para subir ao topo da Justiça nesse país...
- Essa Mary Jane sabe algo a respeito – Rafitcha respirou fundo – a respeito de uma garota que se chama Raveneh?
- Ela já mencionou umas duas vezes, e ambas nas últimas semanas. É contra ela que esse Jorge está movendo um processo, não é? – Amai respondeu com outra pergunta – vejo que essa Raveneh fez algo que a desagradou... um crime?
- Matar a própria mãe.
Amai somente sorriu. Como eu pensava.
- E ela é realmente culpada? – Kitsune perguntou, a voz repleta de preocupação.
- Sim. – dessa vez foi a vez de Rafitcha sorrir – mas ninguém vai falar isso no tribunal, certo?
Kitsune acabou por concordar.
- Você está hospedada onde?
- Pensão Yurii – Rafitcha respondeu – do outro lado do rio.
- Te levaremos até lá – Amai disse – seus amigos devem estar preocupados.
Só aí que Rafitcha percebeu que já era noite e as estrelas já brilhavam, perfeitamente visíveis. Será que meus amigos voltaram para a pensão ou ficaram me procurando na beira do rio?
Mordeu o lábio inferior de preocupação. E consentiu que Kitsune e Amai a levassem para a Pensão Yurii, do outro lado do rio.
Por algum motivo estranho, não consegui postar o desenho correspondente. Mas caso queira ver, é só clicar aqui.
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