- Ah, como estou cansada! - suspirou Raveneh.
- Sim... - Johnny concordou - e ainda temos um funcionário do governo.
- Hã?
Johnny apontou para um homenzinho baixo, barrigudo com um largo bigode loiro:
- Desculpeeee-me senhorrrra - disse o homem no seu sotaque arrastado típico daquele país - tem uuuum homeeeeem que querrr falarrr com votchê... o que digooo?
Era o homem que cuidava da recepção da pequena e simpática pensão. Raveneh, sem pestanejar, respondeu:
- Diga a ele vir para cá.
Era o mesmo rapaz que estava ao lado de Jorge, na pequena recepção, o jovem dos olhos acolhedores e o manto azul-escuro. Será que ele viera trazer as informações do julgamento?
- Eu me chamo Crazy - disse o jovem, sem a menor cerimônica.
- Crazy? - Raveneh achou o nome estranho.
Crazy sorriu.
Bia não falou nada, mas jurava pela sua armadura e pela tia Lia (que esteja bem!) que aquele ser não era um humano comum. Podia até sentir um pouco da energia dele! Que diabos ele estava fazendo ali, em um reino que proibia seres mágicos?
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Umrae estava trancada em sua cabana, entre frascos de vidro com líquidos espumando e ervas sagradas. Estava meio confusa. Na sua frente, um aquário repleto de cobras venenosas como cascavéis e corais. Atrás de si, uma pequena horta repleta de cogumelos estranhos. Ao lado, uma escrivaninha repleta de baldes, frascos e outras coisas para fermentar, misturar, destilar e outras coisas mais.
Vestida com uma espécie de jaleco, todo branco, amarrou os cabelos mais uma vez, mostrando suas orelhas levemente pontudas.
- Um, dois, três cogumelos - cantarolava coletando alguns dos cogumelos estranhamente coloridos - quatro, cinco, seis.
Seis cogumelos pequenos, coloridos. Uns quatro eram vermelhos com bolas pequenas e brancas, famosas nos contos de fada. Os outros dois cogumelos eram ainda menores, com a parte inferior esguia e o topo pequeno e branco.
- Oh, será que vão enloquecer o suficiente?
- Oh, será que vai ser recebido nos braços da loucura?
Umrae macerou todos os cogumelos cuidadosamente (se você não sabe o que é macerar, bem, pesquisa na Wikipedia porque eu também não entendi a explicação xD) e em seguida fermentou. A coloração ficou azul.
- Será que Tatiih saberá usar isso direito? - perguntou-se a fabricante de venenos, alucinogénos e soníferos.
Com cuidado, armazenou o veneno em frascos adequados, etiquetou-os e guardou na estante.
Quando tempo levará até precisarmos destes venenos? - se perguntou.
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Ophelia estava um pouco mais a frente, tentando se distanciar de Cherllaux, andando na floresta ao redor da pequena vila. Mandou que Lala se escondesse ao másimo ("mas acho que isso não é muito trabalho, com uma aura tão fraca quanto a sua") e andasse discretamente na mata ("você é tão fraca, somente alguém com um ouvido astuto a perceberia").
- Você vai simplesmente invadir o castelo das fadas e destruir tudo para depois reconstruir?
Ophelia parou, hesitante. Dava para ver que ela morria de vontade de fazer isso, mas respirou fundo e somente disse pacientemente:
- O que sabe sobre os demônios, Lala?
- Err.... eles aindam existem? - Lala estranhou - não foram todos mortos?
- E as fábulas ainda existem - suspirou Ophelia impaciente - vou lhe contar uma verdade e nunca, jamais se esqueça disso: os demônios nunca foram mortos. Somente os mais fracos e estúpidos, e estes foram mortos pelos caçadores de demônios que ganhavam a vida com isso. Os verdadeiros demônios, os mais poderosos são muitos e estão adormecidos, quietos. Alguns foram adormecidos como eu, outros preferiram ser discretos e viver nas sombras. Não querem viver arriscando suas vidas, pois as Musas já não gostam dos demônios.
- Ah. - decerto a história era muito interessante.
Demônios é simplesmente uma classificação comum para seres que não são fadas, elfos, anões, centauros, enfim não são droga nenhuma. Nascem toda hora, normalmente são absolutamente estranhos e rejeitados pela sociedade. Alguns são verdadeiros monstros como pessoas-aranhas que vivem nos mares, comendo carne humana. Outros são mais simples, somente com algumas diferenças. Podem nascer de qualquer forma que se imaginar.
Mas os demônios mais conhecidos estão classificados nas seguintes categorias: hirika; jaken e ollombi. Hirika é a categoria mais perigosa: mesmo as Musas preferem evitá-los. São demônios estranhos, normalmente com corpos descomunalmente grandes e um apetite insaciável em carne humana. Geralmente nasceram de um outro demônio ou foram enfeitiçados. Estão nessa categoria os dragões canibais e ciclopes violentos. Aí vem os jaken, menores em geral. Somente uns poucos comem carne humana. São conhecidos por terem grandes poderes mágicos para compensar em uma luta com um hirika. Medusas e sereias perversas são dessa categoria. Já os ollombi sao os mais fracos: são derrotados facilmente em uma luta com um eficiente caçador de demônio, inferior a todas as formas de demônios que existem, e se tem casos de herbívoros que vivem em florestas ajudando os outros (esses sobreviveram ao Grande Massacre Demoníaco com muita habilidade). Alguns podem se assemelhar bastante a um ser humano.
Há muitos anos, as fadas estavam vivendo em conflitos com os demônios em geral. Especialmente com os jaken, pois estes não apreciam carne humana mas adoram fadas e seres mágicos: é como se estivessem se alimentando de magia. Os caçadores de demônios eliminavam uns dez por dia, mas era uma calamidade: a cada um morto, nascia vinte. Até que começou uma campanha para matar todos os demônios, não importa o que houvesse. Aumentou os preços das matanças para mais gente ser caçador de demônio, criou uma associação repleta de guerreiros especializados em matar demônios. Foram anos e anos seguidos de campanhas e campanhas, de castração cruel de vários machos e esterilização de várias fêmeas, mas tanto sangue derramado que muitos dos demônios preferiram se esconder. Uma das Musas viveu nessa época, e era uma caçadora de demônios chamada Lia. Ela era anormalmente poderosa e até mesmo um hirika temia a sua espada. Mas um hiriki deu fim a vida dela de forma trágica, encerrando a sua fabulosa carreira.
Enfim, voltando a história, Ophelia parou.
- Vamos acampar aqui, hoje.
Lala não falou nada, somente olhou em volta procurando onde ia pegar a lenha.
- Traga qualquer bicho ou frutas - disse Ophelia - e eu te conto mais sobre os demônios.
Não deu cinco minutos: como Lala não achou nenhum animal em volta (animais são muito sensíveis a poderes mágicos, e decerto, haviam se escondido), acabou achando três árvores frutíferas: uma macieira com seus galhos finos, com maçãs absurdas de tão grandes e vermelhas. Catou umas dez e voltou para a área de acampamento, onde Ophelia aquecia a lenha.
- Maçãs. Que tal? - perguntou Lala. Não sabia porquê, mas não conseguia sentir medo da menina que lhe perfurara o abdomên por puro sadismo. Agora a garota lhe interessava: gostava de escutar suas histórias e adorava quando Ophelia resolvia ensinar algo a ela. Apesar da primeira luta ser tão brutal e marcante, agora era como se elas fossem amigas onde uma ajudava o tempo todo e a outra se resignava em ser ajudada.
- Bleh - fez Ophelia - essa floresta só tem macieira. Pelo menos vamos assá-las!
Talvez você ache estranho, mas muitas pessoas gostam de maçãs assadas, principalmente com mel.
- Precisamos de dinheiro, Ophelia - observou Lala - você precisa de mais roupas, e também de alguma comida.
- Eu nunca me preocupo com comida - disse Ophelia - duas maçãs dessas são o suficiente para quatro ou cinco dias. Só como mais porque gosto.
- Percebo.
- Bem, o fogo está suficiente. Coloque os pedaços das maçãs nesses espetos--
Lala estranhou:
- Como? As maçãs estão inteiras, sequer as cortei!...
Reparou que as metades das maçãs já estavam no espetinho, em um segundo.
- Você precisa aprender a conviver comigo, Lala - Ophelia murmurou com um sorriso - está tão difícil se acostumar comigo?
Lala constatou, surpresa e chocada, que a Ophelia simplesmente pegara as maçãs, as partira em partes exatamente iguais e voltara ao seu lugar, tudo isso em menos de um segundo, em um piscar de olhos: Lala não percebera um vento ou borrão sequer.
Mordeu o lábio inferior. Eu tenho que me acostumar com isso.
Eu tenho que me acostumar com Ophelia.
Mas como se Ophelia é um monstro disfarçado de doçura?
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- Fiquem tranquilos - disse Crazy - eu só vou anotar todos os nomes componentes do seu grupo, senhorita, e lhe informar a data, a hora e o local do seu julgamento. Sou o responsável pela sua segurança e bem-estar aqui na sua velha terra natal, não é?
- Bem-estar! - protestou Raveneh - estou grávida e preferia mil vezes estar em casa, e você me fala de bem-estar! Por quanto eles te pagaram para essa farsa de "bem-estar"? Segurança? Eles querem é me ver morta!
- Não se altere, Raveneh - Crazy murmurou, sem alterar sua expressão - a sua energia está crescendo em um nível muito rápido. Isso é perigoso, você sabe.
O grupo ficou em silêncio, Bia de olhos arregalados e Raveneh surpresa.
- Mas como você--
- Isso não interessa agora, senhorita - Crazy deu um leve sorriso - bem, será julgada às três horas da tarde daqui a exatamente duas semanas, contando a partir de amanhã. No Fórum. A senhorita se lembra de onde é? Continua no mesmo local onde ficava há uns quatro anos atrás, não é isso?
- Mais ou menos isso... - Raveneh sussurrou.
- Bem, se você for punida... tem duas saídas: ou ficar trancafiada na cela até morrer ou ser enforcada - Crazy continuava - torça para caso for punida, que seja com a cela. E que seus amigos estejam aqui e roubem o seu bebê para não o levarem a um orfanato ou coisa pior. Se você for enforcada, será enforcada grávida. Ou seja, duas vidas se desfazem no mesmo instante, sob a corda.
- Ela não vai ser punida - Rafinha disse - e de qualquer modo, mesmo se eu perdesse seja por incompetência minha ou por suborno dos jurados... mesmo se eu perdesse, Raveneh não cumpriria a punição dela.
- Então vocês fugiriam? - Crazy achava a idéia divertida e adorável.
- Sim - Johnny admitiu - só viemos aqui por um contratempo na nossa terra. Como precisavámos de um abrigo e Raveneh queria acabar logo com isso...
- Ah - Crazy mordeu o lábio inferior - bem, eu dei meu recado. Quem sabe nem precisem ser foragidos... até mais.
E saiu pela porta afora.
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- Eu senti algo - murmurou Elyon, sentindo frio - eu senti algo.
O mar estava absolutamente normal, as estrelas nos seus lugares, a lua perfeitamente iluminada lá em cima, as árvores com seus galhos como se abraçassem o céu. Tudo estava na mais absoluta normalidade.
Elyon não se convenceu.
- Eu senti algo. Mas o quê?
E lá dentro do mar, nas profundezas dos oceanos, onde não existe mais uma vida...
... alguém suspirou.
E no próximo capítulo...
- Já estamos chegando. Ele mora por aqui. Dormiu bem?
- Tirando uma pedra que ficou me espetando nas costas, tudo be--
Ophelia já andava para a frente, impassível.
- Hey! - Lala exclamou - Hey! Me espere!
- Cale a boca e me siga discretamente.
Um comentário:
Macerar = amassar/moer misturado em algum solvente, em geral álcool.
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