Renegada está morta há uma semana.
Era muito difícil de acreditar.
Muito mesmo.
Todos estavam com um ar extremamente sombrio, pesado. Ninguém sequer sorria.
O velório e a cerimônia de cremação havia ocorrido há dois dias, e as Campinas estavam de luto. Ninguém estendia as roupas, e também ninguém ligava para isso. Fer não treinava mais com seus punhais, Kibii não usava uma flecha sequer.
Estava tudo muito estranho.
E a mais abalada era, claro, a Raveneh. Ela estava trancada em uma casa recém-feita, composta apenas de um cômodo. Ela não chorava, nem se lamentava.
Somente ficava parada, inerte.
Hoje faz sete dias que Renegada morreu.
Por que era tão difícil se acostumar com isso? Por que era tão difícil acordar e lembrar que uma amiga se matou?
Lembrou de Arthur. Ele estava sob aos cuidados das fadas, que tinham tato em informar que seus pais morreram. Raveneh duvidava seriamente que um dia Arthur pudesse perdoar Renegada pelo que fizera.
Quando o Rei morreu, eu quase desmaiei.
Por que? Por que o sangue lhe parecia tão familiar? Lembrava-se cenas dos pesadelos que tinha quase toda noite.
Estava se sentindo confusa demais. Bebeu um copo d'água.
- Olá, Raveneh.
Uma voz estranha e ao mesmo tempo familiar. Parecia vir de fora e de dentro.
Sentou-se na cama, seu corpo doeu. Não mexera muito o corpo desde que Renegada morrera.
A voz vinha do seu espelho.
- Quem é você? - perguntou Raveneh.
O seu reflexo no espelho não estava igual. Era alguém muito parecido com Raveneh, mas não era Raveneh.
Pois a menina sorria, enquanto Raveneh estava arrasada. E a menina tinha cabelos negros, enquanto Raveneh era loira.
- É tão triste a outra face não te reconhecer, Raveneh.
Raveneh acabou por se lembrar de onde ouvira a voz.
- Catherine?
Catherine sorriu.
- Eu realmente não esperava que você soubesse quem sou... - riu - mas antes de ficar escandalizada... eu não sou a sua irmã. Nem o espiríto dela.
Raveneh suspirou.
- O que está fazendo parada aí? - murmurou Catherine - sete dias que você está mofando nessa cama!
- Minha amiga morreu. - afirmou Raveneh. Não tinha a menor idéia de quem era Catherine e o porquê de conversar com um reflexo no espelho. Mas continuava conversando.
- E daí? - disse Catherine - eu sei que a sua querida amiga, Mycil Regallian, matou o ex-amante dela e depois se jogou da janela. Mas ela não gostaria que você ficasse sete dias prostrada na cama por culpa dela!
- Quê? - exclamou Raveneh - o que você sabe de Renegada?
- Muitas coisas - Catherine sorriu - tudo que eu sei, você sabe. E vice-versa.
- Quem é você?
Raveneh apertou a colcha da cama.
- Nada que te interesse. Simplesmente estou cansada de ficar te protegendo. Saia daí, vá fazer qualquer coisa. Sei lá, treinar luta de espada, colher morangos, lavar roupas. Ficar mofando na cama não ajuda em nada!
- Você não manda na minha vida!
Catherine riu amargamente.
- Mando mais do que você imagina! Agora troque de roupa e vá fazer algo. Estou cansada disso...
- Quem é você?
- Cale a boca. Sabe de uma coisa? Você é fraca demais! Tem que depender de mim pra tudo! Não aguentou nem ver o Rei sendo morto...
- QUEM É VOCÊ?!
- Duh, Raveneh durona - Catherine revirou os olhos - ok, eu me rendo. Digamos que eu sou você.
- Isso não é uma resposta - afirmou Raveneh. Estou ficando louca, pensou, provavelmente é tudo alucinação, coisa da minha cabeça.
- Mas eu sou você. Ou você é eu. Ou... estou ficando confusa com essa história - disse Catherine - ok, com certeza você não deve lembrar de muitas coisas, não é? Tipo, na sua infância.
- Eu realmente me lembro de poucas coisas - murmurou Raveneh cabisbaixa - me lembro de muitas poucas coisas.
- Eu que estava lá - sussurrou Catherine. Ela não ria mais, nem o sorriso continuava em seu rosto - eu estava lá. Muitas vezes você não agiu como tal, Raveneh. Quem agia no seu lugar era eu. E eu, definitivamente, me cansei de ficar te protegendo. Não quero mais.
- Ficar me protegendo? - Raveneh estava surpresa - eu não entendi.
- Idiota. Você tem dupla personalidade - Catherine explicou - eu sou a outra face sua. Entendeu agora?
Raveneh assentiu.
Era realmente confuso esse problema. Mas explicava muito dos seus lapsos de memória que ocorriam desde a sua infância...
- M-maldita... - exclamou a mãe.
Raveneh deu um passo para trás.
- O que eu fiz? - perguntou tremendo, deixando cair o copo de vidro no chão.
- Me envenenou... Maldita...
Raveneh sufocou um grito escandalizada. Como podia envenenar a própria mãe? Era um ato vergonhoso!
E como podia levar a culpa pelo que não fizera? Correu.
- Cale a boca - suspirou.
O sorriso de Catherine se desfez.
- Realmente estou cansada de ficar aturando suas manias - murmurou - eu não aguento mais ficar te protegendo a todo instante.
- Eu nunca pedi isso - Raveneh protestou.
- Tem certeza? - Catherine contradisse - o que mais aguentei foram seus lamentos...
Raveneh estava perdida em suas próprias memórias.
- Aargh... P-por favor... R-Raveneh...
E o sangue pingava do lençol, sujando todo o chão...
- C-Catherine... - Raveneh não sabia o que fazer.
- Você está entendendo agora? - Catherine murmurou - as suas lembranças estão comigo. Você só tem os fragmentos que me faltam... Eu tenho várias opções pra você, Raveneh, e você vai decidir...
Raveneh não respondeu. Levantou-se, e foi para a porta. Saiu, deixando uma Catherine surpresa no espelho.
Lá fora, chovia. A chuva caía fina, quase que sutil, tocando no chão com gotas fragéis.
O céu escurecia, apesar de serem só quatro horas da tarde, e as Campinas estavam vazias: todos estavam recolhidos nas próprias cabanas.
Logo as roupas que Raveneh usava molharam, e ela começou a se sentir frio. Porém não queria entrar em casa onde um pesadelo lhe aguardava. Precisa assimilar a terrível descoberta:
Você matou sua mãe e deixou a sua irmã morrer.
Mesmo que estivesse agindo sob outra outra personalidade, ainda assim, sentia que tinha culpa pela segunda personalidade que absorvera todos os golpes que sofrera na infância. Simplesmente estou cansada de ficar te protegendo, Catherine dissera. Será que Catherine era simplesmente a face que agia por ela? Enquanto Raveneh era doce e aguentava tudo sem reclamar, Catherine era doce e feroz, além de se recusar a levar desaforo para casa.
E muito provavelmente, pensou Raveneh tremendo de frio e medo, ela possui grandes poderes que eu nunca tive... Assim que consegui fugir dos nortistas... Ela matou todos, e eu não sabia...
Eu estava sendo protegida...
Por que era tão difícil se acostumar com isso? Por que isso doía tanto? Por que...?
A chuva começou a engrossar, e Raveneh, tonta como estava, desabou no chão aos prantos.
- Raveneh? - uma voz chamou.
Levantou o rosto, e deu um fraco sorriso.
- J-Johnny...
Johnny vestia um manto azul, e ergueu os braços em um gesto acolhedor.
Raveneh conseguiu se levantar, mesmo com a forte chuva e a confusão mental em que se encontrava, e abraçou o Johnny.
- Você está ensopada, Raveneh - disse Johnny com um leve sorriso - vamos para a sua casa, para se secar.
Raveneh se afastou de Johnny, com o rosto retorcido de fúria e pavor:
- Não! - a voz tremia - ela... ela...
- Ela? Ela quem? - Johnny indagou surpreso.
- C-Catheri... - soluçou Raveneh.
Neste instante, Johnny compreendeu. Finalmente Raveneh descobrira por si própria a outra face e estava verdadeiramente transtornada...
Compreendeu que levar Raveneh de volta para a sua própria casa estava fora de questão.
Abraçou Raveneh o mais forte que podia, e sob a chuva, podia sentir as lágrimas quentes se derramando sob o manto.
- Calma... calma... calma... - sussurrava em um tom calmo para Raveneh.
Ele a guiou até a sua casa, e durante o caminho, ela chorava sem parar. Johnny se perguntou o que ele fizera para merecer isso: amar uma menina totalmente desequilibrada.
Johnny morava em uma cabana de madeira, frágil, e tinha somente um cômodo assim como a cabana de Raveneh. Uma enorme cama de casal, dada pelos pais de Johnny, uma mesa onde uma vela jazia apagada, e um guarda-roupa.
Onde ela vai dormir? pensou Johnny percebendo que só tinha a cama como repouso. E definitivamente não faria Raveneh dormir no chão, como cavalheiro que era.
Raveneh olhou em volta, e respirou profundamente.
Em seguida desabou na cama, mergulhada em um sono profundo. Johnny a ajeitou na cama, com um leve prazer.
Johnny estava bastante cansado, e também desabou na cama ao lado de Raveneh. Dormiria no chão, mas o cansaço não lhe permitiu pensar duas vezes.
Parecia um casal. Ainda não era totalmente noite, e os dois já dormiam na cama dele. Quando deu meia-noite, Raveneh acordou. Assustou-se até se lembrar de que Johnny a trouxera para a casa dele, confusa que estava.
Ele me ajudou... Sorriu.
Levantou-se. Voltaria para a própria casa, mesmo que o espelho a encarasse e Catherine aparecesse. Se no dia anterior todos soubessem que ela passou a noite na casa de Johnny, poderiam criar boatos mentirosos e ela poderia ficar mal-falada. Não queria isso para si.
Percebeu que as roupas ainda estavam molhadas, e percebeu também que Johnny não tirara seu manto azul. Sorriu, e calmamente se curvou sobre o Johnny e conseguiu pegar o manto sem que Johnny acordasse.
Mal abriu a porta, Johnny disse:
- Aonde vai, Raveneh? - indagou surpreso.
- Está acordado? - murmurou Raveneh - eu...
- Sim, acordei quando você tirou o manto - Johnny respondeu com um sorriso - vai voltar para a sua casa? Pensei que não conseguisse suportar Catherine.
- Não consigo - admitiu Raveneh - mas... eu preciso encarar-la de qualquer forma.
- Você tem razão... - Johnny disse - mas você está pronta?
- Não sei - Raveneh não chorou como fizera há algumas horas. Na verdade estava séria, seus olhos azuis refletindo serenidade e os cabelos loiros ainda molhados lhe davam um ar de inocência, como sempre fizera.
Johnny sorriu. A cabana estava escura, e a chuva ainda caía, porém bem mais fraca, quase como uma garoa.
- Você... - hesitou antes de continuar - você está indo para a sua casa, pois teme ficar mal-falada?
Raveneh não teve como negar, tamanha a surpresa, ao que Johnny murmurou com um sorriso:
- Ninguém falaria mal de você, Raveneh. Nós moramos no meio de amigos, e nenhum deles ousaria dizer algo de obsceno contra você.
- Eu sei, mas... - Raveneh não conseguia achar algo para rebater - eu...
- Fique aqui. - pediu Johnny.
Raveneh levantou o rosto, este ficando vermelho:
- Não sei se devo...
- Eu não sou nenhum pervertido, Raveneh - riu Johnny - não farei nada de mal, prometo.
Raveneh sorriu. Como poderia retrucar?
Fechou a porta atrás de si.
- Está bem... - Raveneh disse - mas com uma condição.
- Qual?
Raveneh respirou fundo, e tomou coragem:
- Que fique comigo para sempre.
Johnny sorriu.
- Claro que sim, Raveneh.
A partir daí, Raveneh soube que poderia aguentar de tudo: Catherine-irmã, Catherine-personalidade, a mãe, os assassinatos que cometeu e não lembrava, os pesadelos que continuavam a aterrorizar durante a noite, a tortura que passou nas mãos dos nortistas, o suicídio de uma amiga íntima, tudo.
Ela podia aguentar de tudo.
Mas com Johnny ao seu lado.
Um comentário:
Finalmente ganhei vergonha na cara para acabar de ler a história :p
Parabéns, ficou fantástica *O*
Porém, tenho pena que a Renegada tenha morrido :(
Nunca a vi como uma pessoa má...
Mas...... ADOREI *------*
Espero que não acabe com o blog, mais tarde provavelmente quererei reler *-*
:****
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