domingo, 21 de outubro de 2007

Parte 59 - Catherine conta e sorri... "eu não sou um monstro..."

- Bem... - disse Maria - nós temos que saber o que fazer com os nortistas. Eles estão quase nos nossos portões - as outras fadas começaram a cochichar.
- Sim, temos que expulsar-los do reino - observou Siih - mas quando eles se forem, quem governará? O único descendente é o Calvin Mo...
- E ele vai estar em julgamento - disse uma fada de vestido verde e cabelo marrom - daqui a seis dias.
- Bem, Clah - falou Siih - e se ele for considerado culpado?
- O que vai ser, com toda a certeza! - exclamou Maria - bem, tem o filho dele! Poderemos treinar-lo para a coroa!
- Mas, até o menino crescer? - observou outra fada de bochechas rechonchudas e coradas - quem?
- É. Quem? - indagou Maria para si mesma tristemente.
- Quem?
As fadas ficaram em silêncio.

--------------------------

Enquanto Johnny refletia sobre a desconversa que Raveneh teve ("o que foi mesmo que eu falei? Ah, nada, bem... eu preciso ir, tenho terapia" dissera Raveneh), Gika refletia sobre o dia anterior, quarta-feira. Na segunda consulta, Catherine apareceu. E o que ela contou foi suficiente para deixar Gika abaladissíma a ponto de não conseguir se concentrar em outra tarefa.

Memória de Gika: quarta-feira, consulta de Raveneh:

Raveneh entrara no escritório de Gika confiante.
- Voltou a ser loira! - exclamou Gika - como se sente a respeito?
- Livre. - Raveneh respondeu, porém sem sorrir. Sentou-se no divã.
- Que bom! - disse Gika - bem, eu gostaria que você retornasse ao seu passado. Quando Catherine morreu, para ser mais específica.
Raveneh assumiu um olhar bastante estranho, um olhar quase fatal, por assim dizer, e sussurrou:
- Raveneh foi uma tola medrosa.
Hã?, Gika assustou-se. Essa era a Catherine, que Lych lhe falara? A segunda personalidade de Raveneh? Bem, era ótimo que ela aparecesse. Dava-se para perceber que Catherine guardava todas as memórias que faltavam na Raveneh, sem contar que adorava se insinuar, se gabar do que fazia.
- Qual o seu nome? - indagou Gika.
- Catherine - respondeu - Johnny falou de mim, não? Eu sou um peso nas costas dele - riu amargamente - posso dizer que tirando você, ele é o único que me conhece nessas bandas. Mas eu fui mais importante na vida de Raveneh do que ele imagina. Afinal, eu é que aguentava tudo de ruim que acontecia com Raveneh. E adianto-lhe, doutora: não era pouca coisa. Com uma mãe que nem aquela que Raveneh teve, quem terá uma vida feliz? E claro, não é algo muito feliz o fato de o pai, volta e meia, ser preso graças a um regime absolutamente idiota e fascista.
- Bem - disse Gika - poderia nos contar sobre a morte de Catherine?
- Ih, Raveneh não falou não? - Catherine murmurou. Assumindo um olhar divertido, completou: - ah, do jeito que ela é medrosa, claro que ela não falou. O que foi que ela disse? Que a irmãzinha se enforcou, não foi? Tola, teve medo de encarar a verdade.
- O que você está querendo dizer, Catherine? - indagou Gika, com a voz trêmula. Raveneh mentira a respeito da morte da irmã? Mas... o que havia de tão assombroso, de aterrorizante assim? Raveneh se sentiu culpada pelo suicídio da irmã?
- Foi quando Raveneh tinha uns... digamos, quatorze anos. Eu já existia, claro. Eu sempre acompanhei Raveneh. Eu que carreguei todas as marcas de tortura...
- Fale de como era a rotina na sua casa.
Catherine hesitou, porém seguiu o que Gika pedira:
- Até meus quatorze anos, acordavámos umas oito da manhã. Café da manhã feito por mãe, de vez em quando meu pai estava também. Catherine sentava-se ao lado da mãe, e todos os meus irmãos recebiam ovos inteiros, sanduíches, coisas assim. Mas eu era a única que só recebia um pão com mel e para beber, suco que tinha mais água que fruta. Minhas roupas eram as piores recebidas. Era de longe, a mais maltratada de todas as filhas: a última a comer, a última a tomar banho, a última em receber roupas, etc, etc, etc. Não creio que queira escutar essa história de "oh, pobre criança, foi esculhambada e agora tá aí sozinha". Não quero ficar remoendo a minha infância e tanto quando Catherine quanto a minha mãe tiveram o que merecem.
- Como assim? - indagou Gika.
- Doutora... - disse Catherine - se você tivesse quatorze anos de idade, e a qualquer coisinha, levasse uma chicotada, como iria pensar? Duvido que você iria ser um doce de pessoa para o resto da vida. Isso é coisa de novela. É coisa de Raveneh também. Ela é doce por natureza. E quem não seria, se só tivesse momentos bons? Claro, os ruins sou eu quem passo por eles.
- Catherine - interrompeu Gika - o que você quis dizer com "Catherine quanto a minha mãe tiveram o que merecem"?
- Ah simples - riu Catherine, com um olhar sombrio - com a Catherine foi fácil. Eu tinha quatorze anos na época, e a Catherine tinha uns vinte, vinte e um, vinte e dois anos, por aí. Tinha muitos pretendentes, de tão bela que era. Mas por um acaso acabou se apaixonando justamente por um garoto de dezessete anos recém-casado que não lhe dava bola. Catherine ficou arrasada. A noiva do garoto chamava-se Liin, vinha do Oriente, tinha quatorze anos e fazia um ótimo par com o garoto por quem Catherine era apaixonada, se quiser saber. E Catherine era tão bela quando Raveneh era... porém era orgulhosa e burra, coisa que Raveneh não é. Sabe, existe uma grande diferença entre ser burra e ser ingênua. Raveneh é ingênua: não percebe o quanto Johnny gosta dela. Aposto que Johnny vai fazer um pedido de casamento, e ela: 'hã?? eu já posso casar?". Ela é tola. Mas não é burra, devo dizer. Mas a sua irmã era. Quis fazer ciúmes ao garoto. Se envolveu com o primeiro garoto que encontrou pela frente, um pé-rapado chamado Chouin, e como toda boa história de família que termina em tragédia, engravidou. E idiota como era, tentou abortar. Foi durante uma noite, estávamos somente eu, ela e a minha mãe. Minha mãe dorme feito pedra. E eu estava acordada. E ela - nesse ponto do relato, Catherine repetiu várias vezes: 'tola, tola, tola, tola, tola!!" e continuou - tentou abortar com uma faca, rasgando o ventre. Podia pedir a Velha do Lírio, que dava as ervas para a nossa família, umas ervas abortivas, mas não: pegou uma faca e rasgou o próprio ventre. Eu escutei seus gemidos, e fui para o quarto dela. Raveneh não se lembra bem disso, pois quem assumiu o controle fui eu. Ela estava sangrando muito, e seus lençóis estavam ensopados de sangue. A faca estava no chão. Bom, você pode dizer que eu sou malvada nesse ponto. Mas eu cheguei perto dela e sussurrei bem baixinho: "você não queria morrer? Terá o pedido atendido". Ela estendeu a mão e implorou para que eu a ajudasse, pois sangrava muito e não conseguia se mover. Eu só sentei ao lado dela, e ela gritava: "você não vai me ajudar?" e eu respondi: "não. Eu espero a sua morte há quatorze anos. Não vou perder-la". Ela começou a berrar, chorando...

Gika estava definitivamente pálida, assustada, chocada. Quem era a Catherine? Uma personalidade assassina? Era um relato de omissão diante do suicídio. A irmã não queria realmente morrer, queria tirar o feto dentro de si. Porém o sangramento condicionou a morte e...
... a Raveneh não ajudou.
- Ela era muito tola - continuou Catherine - ela gemeu de dor durante uma hora mais ou menos. Acho que nunca fiquei tão feliz na minha vida, ao ver aquelas gotas de sangue pingando e pingando, sempre gentis... Agora eu estava quase livre. Quando iria amanhecer, Catherine já estava morta. Levantei-me, tomei banho e dormi na minha cama mal podendo esperar quando mamãe acordaria e veria a cena. Não deu uma hora, mamãe soltou um berro que sacudiu a casa. Tive que conter o riso, mas... achei tão engraçado!
- Como você pode achar engraçado a morte da própria irmã? - chocou-se Gika. Catherine sorriu.
- Ahn... - disse - você é uma dessas moralistas? Minha irmã era muito chata. Inútil para a humanidade. Inútil mesmo. Tola, burra, idiota. Mereceu morrer.
Gika se arrepiou ao ouvir aquelas palavras, mas pediu que continuasse o relato.
- Bem, papai chegou dois dias depois, e teve o enterro e o funeral e o bla bla bla. Todos me deram os pêsames, mas eu ria demais. Raveneh, claro, ficou chocada! Ela se escandalizou, chorou, foi terrível! Mas ela nunca soube da verdade, creio. Os pais dizeram que a irmã se enforcara no celeiro e disseram também que ela estava na ocasião. Raveneh sabe que não é verdade, sabe que é mentira. Ela acha que é a culpada pela morte. Mas ela não se lembra realmente do que aconteceu, e como não sabe desculpa melhor, bem, é o que ela diz: a irmã se enforcou no celeiro. Ela não se lembra de nada. Uma semana depois da morte, veio o Charlin, rapaz simplório, tolo. Passei a conviver com ele durante dois anos. Nesse meio tempo, meu pai morreu na minha frente. Disso, Raveneh se lembra um pouco. Meu pai estava em casa, com toda a família reunida em volta da mesa. Havia se passado um ano desde que Catherine morreu. Eis que chega a Dark Milk (N/A: 'dark milk' significa 'leite preto' ou 'leite negro' em inglês. Ninguém sabe o porquê do nome), batendo na porta. Olharam para o meu pai e gritaram: "é este. Peguem-no!". Minha mãe catou todos os filhos e levou pra cima. "Vagabunda" disse um deles "pariu um bocado de neném. Olha só a cambada de cria dessa vadia". O outro riu. "Mas o que queremos é o marido da vagabunda" observou o maior deles "matem-no". "Não!" mamãe gritou "vocês não podem fazer isso!". Somente foi empurrada para a escada, e para evitar ser espancada, subiu a escada. Nós víamos tudo de lá em cima... bateram muito no meu pai. Muito mesmo. Nós gritávamos demais, mas não teve jeito: eles só riam, batiam mais. Eles tinham prazer em nos ver sofrendo aquilo. Nessa noite, era eu e Raveneh alternando. Aquela cena foi tão violenta que eu mesma não aguentei muito... fechei os olhos, deixei Raveneh ver um pouco... depois ela cedia o controle e eu assumia, e foi nisso durante toda a cena. Eu e ela ficamos doentes durante dois dias, depois da cena de barbaridade. No final, meu pai era somente um corpo todo esfrangalhado. Parecia uma massa de carne disforme. Eu não vi, pois tive medo. Mas meus irmãos me disseram que nunca viram um corpo mais maltratado, nem quando a Dark Milk decapitou uma mulher que morava perto da nossa vila e nós encontramos seu corpo. Seu corpo somente não tinha cabeça, mas não havia marcas de espancamento. Mas com papai... não admira que Raveneh tenha pesadelos com essa cena todos os dias.
Gika mordeu o lábio inferior. Já tinhas duas cenas marcantes e fontes de pesadelos de Raveneh, que ajudaram muito³³³ a piorar seus distúrbios de dupla personalidade.
- Mais um ano se passou. Meus irmãos, traumatizados, passaram a trabalhar para o governo. Todos eles. Quando eu completei dezesseis anos, morávamos somente eu e mamãe. Ela estava muito doente, do tipo que não conseguia viver sem ter alguém do lado. Eu, pessoalmente, achava isso um porre. Queria sair daquela vila, queria sair daquele inferno... Mas Raveneh praticamente me obrigava a ficar ali, cuidando da sua mãezinha nojenta e querida. É impressionante como Raveneh era. Sua mãe lhe torturou durante dezesseis anos seguidos, sempre com palavras "você é uma burrinha, não é, Raveneh?" dizia mamãe "você não vale nada!", e sempre com suas tenebrosas mãos: "vou pegar você, ah vou!" e dá-lhe chicotes, cintos, palmadas. Qualquer coisa que Raveneh fizesse era motivo pra surra. E já perdi a conta de vezes que a mãe tentou matar Raveneh: com suas mãos, apertava o pescoço de Raveneh bem forte, estrangulando-na. Ou então quando faziam o almoço ou jantar juntas, a mãe sempre dava um jeito de encostar a faca em Raveneh, fazendo cortar... Nos dias em que iam para o rio, Raveneh não sabia nadar e a mãe sabia. Ela ficava sempre ao lado da mãe, e quando estava prestes a se afogar, a mãe só fazia gritar: "louca! idiota! burra! como pode não saber nadar? Catherine faz isso muito bem!". E era sempre o pai a lhe salvar... O pai nunca prestou muita atenção em Raveneh, assim como nunca prestou atenção nos outros filhos. Foi um pai muito ausente. Mas não lembro de uma única vez que ele levantasse a mão contra mim. Não lembro de uma única vez que ele falasse que Catherine era melhor que eu, que eu era um desperdício de menina. Sei que meu pai nunca desejou que eu morresse, como mamãe desejava. Raveneh amava a seu pai, por isso, sofreu muito quando ele morreu... foi um sofrimento sincero, não falso quando a irmã morreu. Raveneh chorou, mas sabia que estava sendo falsa: ela odiava a irmã. Bem, retomando o rumo inicial... quando eu tinha dezesseis anos, tinha que administrar os remédios da mamãe. Quem fazia isso era Raveneh, eu não tinha saco pra contar os milímetros de água e coisas assim. Até que em um dia quente, Raveneh foi ministrar a dose de um remédio, muito bom em doses certas. Eu acabei assumindo o controle do corpo dela nessa hora, e exagerei nas doses. E o remédio era mortal. Pois bem, depois de ver o que tinha feito, deixei Raveneh assumir a responsabilidade. Raveneh sem desconfiar que havia muito mais remédio do que podia, deu-o para a mãe. A velha morreu na hora. Raveneh ficou muito assustada e com medo que a linchassem por ser culpada pela morte. Então deixou ela lá, fez as malas e ó, se mandou. Bem, aí está. Foi-se embora.
- Você é cruel, Catherine - disse Gika ao fim.
- Eu somente defendo a Raveneh - Catherine sorriu - eu não tenho vergonha do que já fiz. A irmã maltratou a Raveneh tanto quanto a mãe, eu a matei. A própria mãe quis que Raveneh morresse, eu a matei também. Quando Raveneh não podia sofrer, eu sofri por ela. Quando Raveneh foi capturada pelos nortistas e foi chicotada, quem recebeu fui eu. Quando Raveneh quis fugir, fui eu quem assumi o corpo dela e lhe dei energia para seguir em frente até desmaiar. Eu fiz tudo por Raveneh.
- Você a ama, Catherine? - indagou Gika.
- Eu quero que ela seja feliz. - respondeu Catherine admirando a janela.
- Com Johnny? - Gika começou a se perguntar... Catherine realmente estava parecendo sincera. Como seria a Raveneh hoje se a Catherine não tivesse deixado a irmã morrer ou matar a mãe? Será que Raveneh ainda estaria viva?
- Sim. - Catherine parecia sonhadora - quando eu compreendi que Johnny realmente amava a Raveneh, deixei que Raveneh ficasse com ele. Eu odeio a Raveneh? Não... é o que eu digo para Johnny. Eu sou orgulhosa, mas eu só quero o melhor pra ela.
- Catherine... - começou Gika - e se o melhor para a Raveneh é você deixar de existir?
- Simplesmente deixar de existir não é o melhor para a Raveneh - Catherine respondeu com convicção - Raveneh não quer lembrar do que fez. Ou melhor, do que eu fiz. Ela tem valores morais muito diferentes dos meus. E somente Raveneh pode saber o que é melhor para ela.
- Não quer se encontrar com Raveneh? - indagou Gika - vocês duas conversarem... sozinhas?
- É uma boa idéia - disse Catherine - excelente. Talvez eu consiga. Não sei... bem, doutora... quando Raveneh estiver com Johnny, não vou mais interferir... então... diga ao Johnny que eu... que eu peço desculpas, está bem? Eu não sou um monstro como ele pensa que eu sou. Apesar de eu ser completamente antipática, eu... - Catherine chorou.
- Catherine, você... - começou Gika, mas logo o rosto de Catherine se levantou, com as bochechas coradas.
- Catherine? Do que está falando, Gika? - indagou Raveneh. Gika se surpreendeu.

PEIIIIIIIMMMMMMMMMMMMM!!!!!!!!!!!!!!
- O sinal já tocou? - surpreendeu-se Raveneh - mas eu mal cheguei!
- Sim, Raveneh - disse Gika com um triste sorriso - precisarei falar com Johnny. Ele virá hoje?
- Não - respondeu Raveneh - amanhã.
- Oh sim - Gika sorriu - está dispensada, Raveneh.

Fim da memória de Gika. Voltemos ao roteiro normal: já se passou a quarta-feira. ;)

Nenhum comentário: