quinta-feira, 3 de julho de 2008

Parte 44 - Completos e confusos devaneios.

Eram o quê? Três horas da manhã? Ele acordou, o chão frio, mas não se incomodou. Estava bem escuro e felizmente tinham privacidade ali... mas precisava seguir pelo corredor até a grande sala, onde havia uma jarra de água. Sim, estava com sede, sua língua seca. Johnny olhou para Maytsuri que dormia tranquilamente, depois para Raveneh. Ou para o seu contorno, devido à escuridão. Podia ver o brilho dos seus cabelos, conseguia visualizar a expressão serena. Os pesadelos não começaram foi tudo o que pôde pensar, e o pensamento fez o coração se apertar. Seguiu pelo corredor, bebeu um pouco de água, umedecendo a boca e matando a sede. Respirou fundo, e logo retornou à cama. Reparou que Raveneh se mexera, e assim a coberta estava na altura da cintura, de modo que Raveneh sentia um pouco frio devido ao fato de que estava com os braços nus. Johnny ajeitou a coberta carinhosamente, e se deitou ao seu lado. Conhecia Raveneh bem demais para saber que acordaria dali a uma hora com os pesadelos da esposa. Não estava errado.

Passada uma hora, Raveneh ofegava e suava frio. Johnny fez então o que fazia todas as noites: se ajoelhou ao seu lado, colocando a cabeça de Raveneh no seu colo, a abraçando. Aprendera que não precisava acordá-la, só precisava abraçar a esposa, sussurrando palavras calmas. E aos poucos, os gemidos medrosos que Raveneh soltava diminuíam, e ela só abria os olhos por um curto espaço. Percebia onde estava, envolvia Johnny com seus braços e se deixava dormir novamente, dessa vez de forma tranquila.
Ele sorriu, admirando a face de Raveneh. Provavelmente os pesadelos aumentariam devido a vingança que Raveneh acabou por executar... disse para si mesmo que daria um jeito de proibir a Raveneh de lutar na guerra contra Ophelia. Mesmo que Raveneh fosse boa com espadas, ele temia se isso causaria mais algum pesadelo e aflição. Definitivamente, era difícil conviver com uma pessoa tão problemática, tão contraditória. Mas ele não se arrependia de nada: sabia que podia passar a vida toda sentindo o cheiro daqueles sedosos cabelos loiros, que nunca enjoaria daqueles olhos azuis que pareciam saber de tudo e ainda assim serem tão doces. Adorava cada centímetro de Raveneh, e até Catherine ele aprendera a amar. Precisou abrir mão de várias coisas como uma boa noite de sono já que acordava por causa dos pesadelos. O casamento com Raveneh era uma prisão, mas uma prisão de que ele nunca desejara sair. Não podia mais viver a vida de farras, abrira mão de toda a independência, de não precisar dar satisfações para alguém, nem mesmo para Rafitcha. Mas quem se importava? Ele abriria mão de qualquer coisa se fosse por Raveneh.

Olhou para o teto: não havia sol. Mesmo que logo, logo começasse a amanhecer lá fora, eles não ia sentir: estavam trancados em um abrigo, com medo de Ophelia. E pela expressão apreensiva que Maria tinha, ao dormir ao lado do filho, as notícias não eram nada boas. Não permitiria que Ophelia e seus demônios levasse Raveneh ou Maytsuri. Raveneh se remexeu, aconchegando-se mais ao colo de Johnny. Quatro da manhã? Talvez, lá fora estava escuro ainda e aqui... bem, estavam dentro de um abrigo subterrâneo. Suspirou profundamente, pensando em várias coisas ao mesmo tempo. Acabou adormecendo.

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Siih não dormira a madrugada inteira, só pensando e delineando um plano mais perfeito. Claro, o básico já fora feito: detalhes como quem faria o quê, coisas como ponderar o quanto de poder será importante. Mas agora ajustava, aperfeiçoava. A noite estava linda, toda estrelada. Não estava mais quente, já que faltava apenas alguns poucos dias para ser outono. As folhas já começavam a se amarelar, Siih percebia. Dahes cochilava na cadeira, inconformado por ser mandado a cuidar da Majestade embora ela estivesse perfeitamente bem. Lefi dormia, assim como as Musas e as assistentes. Só ela estava acordada, admirando cada estrela que brilhava lá no alto. Queria ser uma delas, sempre alheia aos dramas terrestres. Não queria essa responsabilidade, estava com medo. Sim, era duro admitir, mas estava com medo de Ophelia. Olhava para a prancheta diante dela, onde anotações eram feitas. Escrevia melancolicamente, não conseguindo deixar de pensar nas consequências de cada alteração no plano. Tinha que se controlar para não chorar, parecer forte, impenetrável. Não podia deixar Ophelia descobrir suas fraquezas, e não queria deixar que qualquer um descobrisse como o seu interior estava confuso. Lembrou-se da sua mãe. As feições sempre duras, a frieza na voz, a postura tão imponente... obviamente uma verdadeira Rainha que não se lamentava pelos erros que cometera, uma Rainha que nunca estava indecisa. Mas sua mãe morreu. E você está viva. De que adiantava se comparar a alguém morto? Era tão vergonhoso admitir que não podia ser igual à mãe. Não lembrava de uma noite que a mãe lhe lera histórias, não lembrava de carinhos da mãe. Quem realmente ficava ao seu lado, quem sorria a cada vez que ela fazia alguma brincadeira era o seu pai. Sua mãe precisa trabalhar, querida dizia seu pai. O vidro da janela refletiu seus olhos castanhos. Eram olhos idênticos aos da mãe, aqueles olhos penetrantes. Era idêntica à mãe, reparou: além dos olhos, havia o cabelo. Longo, liso, castanho. As madeixas de um tom bonito de castanho, algo lembrando chocolate amargo, talvez, devido ao tom escuro, comumente confundido com negro. Diferente do seu pai que tinha olhos dourados e madeixas quase brancas, a pele absurdamente pálida. Sim, saíra completamente diferente do pai: a pele morena, os cabelos escuros, os olhos penetrantes que não sabiam exibir doçura por mais que tentasse. Só pessoas como Lefi podiam ver a bondade escondida naqueles olhos, pessoas que conviviam com a Siih todos os dias. Lefi. Os cabelos realmente negros, mais escuros que os da Siih, eram bonitos. Não eram encaracolados, mas também não eram completamente lisos. Um meio-termo que Siih não conseguia definir... e aqueles olhos azuis de Lefi, sempre reveladores. Voltou a atenção para Ophelia. Se distraíra demais, perdida em devaneios.

- Majestade? - Dahes acordou, tonto - acordada?
Ele piscou lentamente, se recompondo imediatamente.
- Fique aí, Dahes - murmurou Siih - estou sem sono, não se preocupe.
- Eu... - Dahes engoliu a saliva - Vossa Majestade precisa de algo?
- Não, obrigada - Siih continuou pensativa - pode voltar a dormir.
- Os empregados estão acordando agora - Dahes disse - para arrumarem tudo antes da Vossa Majestade acordar. Portanto, eu acordei no horário normal.
- Ah - Siih somente fez, mordendo os lábios o tempo todo. Não estava mais a beira de um ataque de nervos, agora que conseguira se controlar. Tinha que aprender a ter alguma frieza, só assim sua mãe conseguiu governar por tanto tempo. Deu um curto suspiro, voltando às anotações. Tente ser prática - ser prática - prática - prática murmurava para si mesma.
Não demorou muitos minutos, o plano realmente começava a parecer um plano perfeito, sem falhas. Sorriu ao imaginar tudo... detalhes, lugares, falas, reações, sentimentos.

Siih achava que estava contando com tudo.

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Ophelia e Lala não estavam se falando, nem mesmo para as coisas básicas. Lala seguia Ophelia com a cara amarrada, engolindo a saliva a todo instante, tentando se controlar para não gritar impropérios. Ophelia que caçou dessa vez, conseguindo um pássaro realmente grande, de pelugem macia e amarronzada que ambas comeram: Lala seria idiota em recusar uma comida que era assada e que não era maçã. Ophelia não tentou falar com Lala, nem mesmo um "trouxe comida". Era orgulhosa demais para pedir desculpas e depois não sabia direito qual era o problema de Lala. Tentou transmitir desde o começo quem era. Ophelia nunca disse que seria o tipo de pessoa justa na hora de guerrear, somente criara laços de afeição com Lala a ponto de protegê-la se necessário. Mas, francamente, o que Lala queria? Que ela simplesmente fosse no castelo, conversasse com Siih algo do tipo "você pode me dar todo o seu império para eu ser a Rainha aqui?". AH! Nem em sonho.

Tinha que ter um plano mais engenhoso. O primeiro passo já fora dado, atacando uma vila. Não precisou mover um dedo, nem piscar os olhos. Os demônios simplesmente souberam que aquele era o momento ideal. Fora um ataque perfeito e inesperado. Mas agora precisava dar outros ataques tão perfeitos e tão inesperados como o primeiro foi, e sabia que isso seria mais difícil. Mas conseguiria ainda assim. Derrubaria todo o reino... mas agora precisava de uma cidade mais importante para o prejuízo, além de ser vidas, também se mostraria através do dinheiro... talvez a cidade de Heppaceneoh seria muito interessante, sendo tão próxima ao Reino das Fadas... sim, oh sim, seria interessante. As Campinas provavelmente estavam protegidas, droga. Tinha que ser um lugar distante, uma cidade nem tão importante assim...
Mividell.
Sim, aquele reino estranho que rendia ao Reino das Fadas cerca de 40% dos rendimentos anuais. Era um reino pouco conhecido, repleto de Glombs que faziam um pesado trabalho escravo, em minas. Cidadãos comuns não conheciam o reino, pois este era escondido pelas Fadas de alto escalão. Era um segredo de estado, um reino enfeitiçado para parecer somente escombros. Mas os Glombs sabiam a verdade, a verdade que destruiria a reputação do governo caso fosse revelada. Glombs não eram as criaturas mais adoradas, era verdade. Mas nenhum cidadão pensaria nisso, pois não havia somente Glombs ali. Ophelia, por acaso, sabia que quando uma criança era órfã, era enviada ao orfanato até completar 18 anos. Depois disso, não eram simplesmente liberados, mas sim mandados a este reino de estranho nome, onde trabalhavam forçadamente. Era um cenário cruel, que qualquer jornalista daria um braço para noticiar, um cenário escondido. Como Ophelia sabia mesmo? Talvez... provavelmente a mãe descobrira graças a um Glombs foragido.. isso não importava agora. Eram informações importantes e confidenciais, e um ataque nessa cidade ia chocar todos. A magia que protegia o reino era frágil, um inesperado ataque romperia esse véu tão delicado e todos descobririam a existência... um perfeito artifício que mantinha em segredo durante tanto tempo. E com certeza, Siih não contava com isso. Mas a Siih era tão inocente, não contava com nada!

Sorriu maleficamente, e Lala reparou nesse sorriso. Ela reparou nisso, assim como reparou no brilho anormal nos dois olhos de Ophelia. Percebeu que a amiga estava muito tranquila, muito mais cínica. E receosa, percebeu que mais um passo seria dado. E ela não poderia fazer mais nada pra impedir. Embora a tentação de ser a Princesa fosse absurda, ela sabia que não era certo. Queria o poder assim como Ophelia queria e brigara por uma causa perdida. Sim, era estupidez acreditar que Siih tivesse alguma chance contra Ophelia. Ela havia visto, ela havia presenciado: Ophelia era um monstro. Como poderia competir? Fora idiota em acreditar que podia sair dali, mas na verdade estava presa. Era escrava de Ophelia e por mais que Ophelia gostasse dela, essa situação nunca iria mudar. Era orgulhosa demais para pedir desculpas, mas realmente não queria brigar com a amiga e agora se sentia mais inclinada a ir "pro lado de Ophelia". Que situação. Era só pedir desculpas e ficava tudo por isso mesmo. Grande merda.

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Kibii acordou, impaciente. Havia tido mais um daqueles sonhos irritantes em que estava em um castelo, sozinha. Podia se lembrar de cada detalhe do castelo: a tapeçaria com toda uma árvore genealógica, mas não conseguia se lembrar dos nomes e rostos, os tapetes caros e vermelhos, os móveis de madeira escura, as portas de madeira com batentes dourados, os corredores e escadarias sem fim, e um cheiro, um cheiro de algo que a perturbava imensamente. Nunca conseguia lembrar que cheiro era, o que significava. Só lembrava perfeitamente que era estranho, familiar, atordoante. E no final, sempre no final do sonho, alguém lhe empurrava um anel. De prata e rubi, lindo. E quando conseguia enxergar o anel direito, acordava. Esse sonho sempre recorrente a irritava, tirava sua paciência e lhe causava umas boas três horas de mau humor. Era simplesmente frustrante não conseguir se lembrar do que os sonhos lhe lembrava.

Lembrava-se do seu passado muito vagamente. Lembrava que tinha uma mãe, talvez até uma irmã. Lembrava das horas ao ar livre que passava, treinando arco-e-flecha. Eram dias felizes que recebia presentes, agrados, cortesias. Mas se lembrava também que um dia tudo isso mudou. Mas não conseguia lembrar o nome de ninguém que convivia com ela, e não conseguia lembrar de onde viera. Era angustiante perceber que trazia uma série de heranças além do anel de prata e rubi: o arco de madeira rara, as jóias que ainda mantinha consigo, alguns vestidos de fino tecido, toda uma série de flechas que nunca usava com medo de perdê-las: flechas de ouro, prateadas, decoradas com pedras preciosas e outras mais simples, de simples madeira, porém eficientes. Mas agora o que isso importava? Lembrava seu nome completo e podia dizer que pertencia à raça dos elfos com a maior tranquilidade. E agora tinha um lar, e esses sonhos não chegavam a ser pesadelos. Cinco e quatro da manhã. Precisava tomar um banho, assim dizia a sua rotina diária. Mesmo que fizesse frio, ela não se incomodava. Todos começavam a acordar também, reparou. Levantou-se, pegando uma toalha e as roupas que usaria durante o dia, se dirigindo ao banheiro.

- Bom dia, Kibi - cumprimentou Umrae que já estava na banheira. Sim, como um abrigo não pode ser enorme com um banheiro com uns mil chuveiros, então foram feitas várias banheiras onde cabiam tranquilamente umas quinze pessoas e com grande espaço entre elas. Talvez essas banheiras de água quente onde as pessoas tomavam banho juntas inspiraram aqueles famosos banhos japoneses que as pessoas chamam de "fontes de águas termais". Dizem que relaxam. Kibii enrolou a toalha em si própria, descendo à banheira respondendo ao cumprimento.
- Acordou cedo - murmurou Kibii. Normalmente era a primeira a acordar cedo, sendo que Umrae vinha logo depois.
- Sim - Umrae concordou - bem, eu irei a Heppaceneoh hoje, comprar algumas coisas. Quer algo?
- Hmmm - fez Kibii apreciando a água azul e quente - eu preciso comprar luvas, botas e roupas novas.
- Bem - Umra ergueu as sobrancelhas - você não vai experimentar antes de comprar?
Kibii contorceu o rosto em uma careta, indicando que não gostara da idéia:
- Não. Eu te dou meu tamanho, você escolhe a mais simples roupa que tiver e pronto - hesitou antes de falar - experimentar roupas é chato.
Umrae deu um riso seco.
- Bom dia - Fer havia chegado, colocara suas roupas em um canto, e enrolada na toalha assim como Umrae e Kibii, mergulhou na banheira.
- Bom dia - cumprimentaram Kibii e Umrae em uníssono.
As três tomaram o banho caladas, o silêncio sendo interrompido apenas com comentários sobre o tempo ou sobre demônios (que se tornaram um tema recorrente de conversa ultimamente). A primeira a sair foi Umrae, depois Fer e por fim a Kibii. Nenhuma delas foi original na hora de escolher roupas, pois estavam preocupadas demais com a guerra que viria para isso: Umrae optou por um figurino prático envolvendo botas, uma capa marrom e blusa branca (tinha uma estranha predileção por blusas brancas mesmo que elas fossem as primeiras a se sujarem), Kibii preferiu roupas completamente negras (iria treinar em uma área completamente escura da floresta e o negro se mesclava perfeitamente) e Fer deu preferência a uma blusa de frio, calça e botas com tonalidades variando desde verde-musgo até o negro.

- Bom dia - murmurou Tatiih. Ela tomara banho em outra banheira, e usava um vestido azul-marinho - café da manhã!
A sala era circular e os tapetes estendidos onde as pessoas ficavam sentadas, comendo tranquilamente. Sim, cinco e meia da manhã, todos estavam acordados. Ou você acha que antigamente havia a moleza de hoje em dia? De modo algum! Raveneh ninava Maytsuri que acordara dando um berreiro fenomenal, que conseguiu acordar uma Rafitcha que só queria saber de dormir (pois a pobre coitada não conseguira realmente dormir durante a viagem). Amai e Kitsune tinham feito amizade com as pessoas, especialmente Amai que passara a conversar com Raven e Kitsune ficou bem amiga de Maria, ambas discutindo sobre como é difícil criar uma criança. Malygna e Thá e Vinicius tomaram o café quase em um círculo fechado, Bia apreciava o café sozinha, encostada em um canto.
- Bia! - chamou Raveneh - venha!
- Oi? - Bia levantou o olhar para ver quem chamou. Ao ver que era Raveneh, deu um leve sorriso somente.
- Venha! - disse Johnny - você fica aí toda sozinha, solitária! Até parece que não tem amigos.
Ah. Amigos. Bia Premy tinha amigos? Uau, isso era um feito bom considerando a vida de Bia, mesmo considerando que ela tinha o quê? Dezesseis anos?
- Ok - Bia acabou concordando. Como poderia recusar?
Levantou-se e se sentou ao lado de Raveneh e Johnny, com Rafitcha do outro lado.
- Está tudo bem agora - Raveneh sorriu - não é, nenê?
Bia deu um fraco sorriso, sabendo a mesma coisa que todos: estavam tremendamente errados. Não estava tudo bem, muito pelo contrário. Mas como admitir sem um ataque?

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