sábado, 12 de julho de 2008

Parte 48 - O sol que castiga.

Duas horas da tarde. O sol ainda irradiava contente, contradizendo os acontecimentos infelizes que ocorriam lá embaixo. Duas horas da tarde, e todos no abrigo estavam reunidos. Todos voltaram rapidamente depois da notícia sobre Ophelia, preocupados.
- Eu não vou ficar me preocupando com Ophelia - Maria disse - se ela vier aqui, ela vai receber!
- Acontece que não podemos com ela - Raveneh havia se levantado e recusou as ordens para ficar na cama - Ophelia é uma arma de matar.
- Bem, se a gente tivesse criaturas mais poderosas que mortais e elfos - Umrae sugeriu - criaturas aliadas como Ophelia tem seus demônios.
- O que está dizendo, Umrae? - perguntou Kibii intrigada.
- Ela está se referindo aos dragões - Amai respondeu - não é?
- Absolutamente - Umrae deu um sorriso de canto. - duvido que Ophelia possa acabar com um bando de dragões. Ora, Ophelia é uma Musa, a mais poderosa Musa. Tá, e daí? Ela não pode acabar com as criaturas mais antigas que existem por aqui!
- Ela tem razão - concordou Kitsune - dragões são seres extremamente poderosos.
- E onde podemos arranjar um exército de dragões que queiram nos ajudar? - perguntou Maria.
- Vamos até uma caverna qualquer e prometemos o 13º salário, carteira assinada e todos os direitos? - ironizou Fer.
- Cala a boca, Fer - Rafitcha riu discretamente, um riso comprimido pela atmosfera sombria.
- Grillindor tem dragões, não tem, tia? - perguntou Amai.
- Sim, o maior exército de dragões domesticados que se conhece - disse Kitsune - pretendem pedir ajuda para Grillindor?
- Grillindor... - Raveneh repetiu a palavra em um tom muito baixo que ninguém ouviu. Para ela, a palavra tinha um sentido especial que lembrava o fim do pesadelo que a perturbava.
Maria abraçava um garoto dorminhoco, preocupado com a criança. Será que Ophelia queria a submissão das Campinas? O que faria? Ansiava por respostas, uma compreensão maior.
- Bem, ela não pode invadir isso aqui de qualquer jeito - Umrae lembrou - nós estamos sob proteção mágica, esqueceu?
- Sim - Bia concordou. Ela se mantinha calada durante todo o tempo, só falando quando achava que tinha algo a acrescentar - mas os Encantos não são suficientemente fortes.
- Como assim? - Fer indagou, intrigada.
- O Encanto que colocamos aqui foi do tipo que se enfraquece perante as fadas. Protege perfeitamente contra seres inimigos das fadas como Ophelia e seus demônios. Mas deixa ela virar Rainha de verdade, e assim o Encanto é esquecido.
- Então o Encanto é uma farsa - Umrae murmurou, não como se estivesse surpresa.
- Por que as fadas Encantam isso aqui? - Raveneh perguntou, intrigada.
- Porque fizemos um pacto com as fadas para nos libertamos de Heppaceneoh - Maria respondeu prontamente - e esse vínculo dura cem anos. Não nos submetemos a elas oficialmente, mas os Encantos são prestados por ela.
- Encantos é uma forma sutil de manipulação cruel - Bia sussurrou.
- Então por isso viemos para cá - raciocinou Rafitcha - porque o abrigo é protegido por magias mais fortes, certo, que não se quebrariam meramente por Ophelia ser a Rainha. Certo?
- Na mosca - Maria respondeu - aquelas fadas sempre foram uma praga. Siih é manipulada a todo momento e nem desconfia como as coisas são feitas.
- Mas ela não é a Rainha? - perguntou Tatiih intrigada - como assim, é inocente?
- Mas ela só faz assinar - Maria respondeu mais uma vez - ela assina e pronto. Aquelas fadas do Conselho fazem todos os documentos, ajeitam tudo e mandam para ela assinar. Ela assina primeiro porque não sabe como funciona a coisa, a mãe não lhe ensinou direito e o pai sempre detestou as responsabilidades. E segundo porque ela odeia ser Rainha. É um fardo que ela não gosta de carregar.
- Bem, uma Rainha que não pôde escolher e não tem noção do cargo que ocupa - Tatiih concluiu.
- Exatamente - Maria respondeu.

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O grupo das cinco Musas estava ali, em frente ao Palácio, duas horas e meia da tarde. Pelo visto Ophelia ainda não havia pego a coroa, não tinha pressa nenhuma.
- Acha que Siih vai ficar enfurecida com a gente? - perguntou Alice olhando para as torres do palácio. Eram quatro torras, cada uma em um ponto cardeal.
- Por quê? - Miih olhou para Alice intrigada.
- Não a ajudamos com Ophelia - Alice respondeu - simplesmente assistimos o espetáculo.
- Ora, a gente a ajudou e tivemos duas de nós feridas - Miih retrucou, ao que Catherine retorquiu:
- O plano não era daquele jeito, aquilo foi puro impulso, nós sabemos.
- Bem, se quiserem ficar implorando perdão a Siih, que seja - Miih deu as costas para o palácio, os cabelos negros batendo nos olhos - mas eu vou ajudar Loveh e Sunny. Siih que se vire.
- Cruel! - gritou Catherine - como pode largar esse reino a própria sorte?
- Eu sempre deixei esse reino a própria sorte - Miih sussurrou - esse reino tão adorado por vocês nunca foi um lugar decente para mim. Por isso que moro longe e só me aproximei daqui por causa de Ophelia.
- Ah! E se Ophelia vier atrás de você? - gritou Alice, ainda não acreditando no que Miih dizia.
- Eu a mato - Miih respondeu friamente.
Somente Elyon ficou calada, concordando intimamente com Miih. Assim como a Miih, não tinha a mínima vontade de ajudar e proteger o reino, ao contrário de Catherine e Alice. As histórias anteriores não permitiam esse ridículo sentimento de patriotismo, e Miih desprezava as fadas e tudo o que elas significavam.
- E você? Vai ficar? - Catherine se virou para Elyon preocupada - essas pessoas...
- Só estou aqui porque quero vingar Olga - respondeu friamente - mas precisamos ajudar Sunny e Loveh.
Catherine e Alice engoliram em seco, e resolveram voltar também. Precisavam se unir mais fortemente, para depois lutarem com Ophelia.

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- Sala de Ouro, quarto corredor, Segunda Torre - Ophelia murmurava.
Passara as últimas horas tomando um longo banho e descansando profundamente, relaxando. Os criados não tiveram a menor dúvida em ajudá-la em tudo, todos ainda temendo o destino de Libby. Aliás, o corpo de Libby foi levado por uns Glombs enojados até um salão. Lala, que também recebera um quarto e estava tomando banho, pedira a Ophelia que desse um destino digno ao corpo e foi atendida. O corpo de Libby seria queimado ao pôr-do-sol em uma cerimônia fúnebre, e as cinzas seriam jogadas no lugar escolhido por Siih. E por falar em Siih, essa estava sendo atendida por um bando de enfermeiros ansiosos, o braço sendo engessado e o corte curado.
Eu falhei, mãe.
Doía tanto admitir isso para si mesma! Era como se um punhal fosse enviado em seu coração com toda a força, e a derrota parecia inadmissível. Lefi olhava para a janela, sentado ao seu lado. Seus olhos azuis demonstravam tristeza, e parecia imerso nos próprios pensamentos.
- Lefi.
Lefi piscou os olhos e logo olhou Siih. Ao ver o sutil sorriso que se estranhava na face da irmã, sorriu também.
- Tive tanto medo de te perder... - Siih sussurrou - tanto medo que ela te matasse...
- Tola - Lefi disse - Libby vai ser queimada no pôr-de-sol.
- Queimada? Com toda a cerimônia? - Siih mordeu o lábio inferior - Ophelia não vai simplesmente jogar Libby para os malditos demônios dela?
- Não. Foi um pedido de Lala - Lefi respondeu - ela veio me contar pessoalmente, a Lala.
- Lala... - Siih olhou para baixo, os lençóis azul-claros - eu não a via fazia dois anos, desde o julgamento de Renegada...
- Eu sei - Lefi respondeu - aparentemente ela estava viajando por aí, tipo uma andarilha. E por acaso ela encontrou Ophelia...
- Parece que Lala é escrava de Ophelia - Siih sussurrou - provavelmente lutaram e Lala perdeu.
- Impossível, Lala teria sido morta - Lefi lembrou, ao que Siih disse:
- Ophelia estava sozinha e precisava de companhia. Mesmo que não fosse alguém muito poderoso, só precisava de alguém a quem se afeiçoar... Ophelia sempre foi do tipo dependente, todo mundo sabe disso. É daquelas pessoas que odeiam viver sozinhas.
Lefi suspirou.
- Bem, você está viva - disse - o braço está quebrado e o orgulho ferido, mas veja bem, está viva!
- Não seja idiota, Lefi - Siih rosnou - ela quebrou o meu braço, mas ela vai ter muito mais, posso assegurar.
- O que vai fazer? - Lefi perguntou, com medo na voz.
- Não posso falar - Siih olhou em volta desconfiada - ela deve ter espiões.
- Como se ela fosse organizada para isso - retorquiu Lefi friamente. O braço quebrado doeu, e Siih se forçou a ficar deitada na cama.
Lefi deu um longo suspiro, lamentando pelo braço quebrado da irmã, mas pelo menos estava aliviado por ela estar viva. Se Siih estivesse morta, ele não ia saber o que fazer.
Eu falhei, mãe.
Por que você nunca me disse que isso era tão difícil?

- Você acha que ela tem espiões? - perguntou Siih preocupada - ela é tão desorganizada! Está tomando esse país a torto e a direito, não calcula estratégias e tudo o mais...
- Você não calculou muito bem na hora de enviar as sete Musas - Lefi lembrou - o que estava pensando?
- O plano era para atacar Ophelia dormindo, um golpe traiçoeiro... - Siih mordeu o lábio inferior remoendo os furos no plano. Por que não previra que as Musas iam esquentar a cabeça e atacar a esmo? - mas...
- Elas não aceitaram se submeter a você, irmã - Lefi disse - Alicia me contou que escutou uma das Musas no banho, sabe. Ela ficou apavorada... Alice, assim como as outras, tem tanto desejo de matar Ophelia como você. Mas elas nunca vão se curvar a uma fada!
- Então é esse o problema? - Siih sibilava, com a voz cortante e fria - pois bem, eu não tenho culpa de nascer fada. Não tenho culpa se tive que herdar essa coroa idiota. Que me importa? Estava muito melhor no Oriente.
- Siih... - Lefi começou com severidade, ao que Siih interrompeu:
- Estou falando sério! O problema é obedecer a mim. Há dois anos que assumi esse trono e tudo o que as pessoas fazem é menosprezar o

meu trabalho! Eu mal sei dos segredos de Estado.
- Todos acham que você sabe - Lefi disse, a voz mais branda.
- Eu não tive coragem de tocar naqueles documentos - Siih virou a cara para o outro lado, escondendo o rosto choroso - eu só soube sobre Mividell e não tive coragem de ler o resto... não, não quero ler aquilo.
- Mamãe confiou em você - Lefi lembrou, passando as mãos pelos longos cabelos da irmã.
- Confiou errado, então - Siih continuou, a garganta dando um nó - ela nunca contou para mim, nunca, nunca. Por que ela me deixou sozinha? Ela me deixou sem nada quando morreu! Simplesmente despreparada, como se informações confidenciais não fossem importantes!
- Calma, Siih! - Lefi exclamou - você vai vencer Ophelia!
- Como? Me diz, como? - Siih sustentou o olhar de Lefi - Como? Ela mutilou Libby como se fosse uma... - chorou, as lágrimas se derramando, salgadas, pelas bochechas - ela machucou Loveh e Sunny, caramba!
- Mas não matou as outras Musas - Lefi lembrou, ainda sustentando o olhar furioso de Siih.
- Porque elas se acorvadaram - Siih rosnou - eu pude sentir, eu pude! Elas evitaram lutar mais, eu pude sentir! Não posso culpá-las... não posso. Eu também evitaria qualquer luta com Ophelia se algum colega meu se machucasse antes... Sunny...
- Ela está bem - ponderou Lefi - e Loveh também. Você pode sentir a energia delas, não pode?
Siih abanou a cabeça, quebrando o contato visual.
- Longe demais, eu sou fraca demais - sussurrou a garota visivelmente contrariada.
Lefi suspirou. Siih estava abalada ainda, e eram somente três horas da tarde.

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Loveh nunca sentira tanta dor.
Obrigara seus ferimentos a se fecharem, e quando as células se multiplicaram em um ritmo furioso, isso doía. E Loveh não conseguia compreender como Ophelia havia sarado a ferida tão rapidamente, tão naturalmente. Olhou para o lado, onde Sunny repousava inconsciente devido a força que fora preciso para se recuperar dos machucados. Reparou que estavam sozinhas, e não conseguia identificar ninguém a raios de vários quilômetros. Provavelmente as cinco garotas foram atrás de Ophelia e Lala, era esse o nome da garota de cabelos laranja? Sim, era. Será que elas se mantiveram longe da luta? Era o mais sensato, se manter longe da garota. Prometeram que ia atacar Ophelia e atacaram. Perderam a luta, e agora a promessa havia sido feita. Loveh não tinha nenhuma promessa em relação a Ophelia, e só acumulava o ódio necessário para uma furiosa luta. Mas persistir agora...

Era inútil.

Loveh se apoiou em uma árvore, se recuperando lentamente. Duvidava sinceramente que Ophelia não sentisse dor, ainda mais quando foi atacada tão brutalmente. Mas ela se recuperara facilmente, foi capaz de correr carregando uma garota. Como podia não sentir pavor diante de Ophelia?

Talvez Ophelia não demonstrasse que sentia dor, isso com certeza era bastante humilhante para ela. Ophelia sempre tinha aquela expressão de serenidade, como se nunca se importasse. E só a vira uma vez para ter essa certeza... primeira vez que vira Ophelia com corpo de mulher, madura...

Lembrou-se dos tempos passados, quando Ophelia era só uma criança. A mãe que era o monstro.
Ela tinha cabelos mal-penteados e castanhos. E os seus olhos eram de um tom feio de verde, um verde muito apagado, muito distante e muito triste.
Ela tinha um sorriso medonho, e tinha um corpo magro, castigo dos tempos da fome, talvez.
E ela tinha ambições perigosas, ambições que guiaram uma criança ao sofrimento.

Se fechasse os olhos agora, podia-se lembrar perfeitamente do cenário destruido, de uma garota que chorava sem parar, sem poder fazer algo a respeito da mãe. A mãe estava nas mãos de Elyon, a mãe se debatia furiosamente e Miih estava na frente da mãe, praticamente tapando toda a visão de uma mulher ossuda se contorcendo para sair.
Mas Ophelia podia ouvir a voz, a voz que rasgava o senso de justiça como quem rasga um papel.
- Mate-as! Não se preocupe comigo, mate-as!
Olga era bondosa demais, talvez. Sabia segredos das estrelas, Musa que podia ouvir os sussurros da noite. E Loveh odiava se lembrar de Ophelia, uma criança somente, se descontrolando completamente, estraçalhando Olga e logo cair adormecida, perdida em pesadelos. O sol estava serenamente dando adeus nessa hora, e as primeiras estrelas se derramavam no céu.
- Olga! - Elyon soltou a mãe, chocada.
- Solte a minha mãe - Ophelia sabia que a irmã já estava perdida.
Olga não se incomodou, somente um pouco mais...
- OPHELIA! - foi nesse instante que a mãe morreu e a filha se descontrolou.
Foi Elyon que matou a mãe, com somente um golpe despercebido de espada, foi um instinto. Elyon ficou tremendo incontrolavelmente, ao ver um cadáver desabar em cima dos pés, sujando de vermelho-sangue os seus sapatos. E Miih se virou para observar o cadáver, e Ophelia pôde ver. Olga havia a perfurado toda, mas nenhum sangue se derramava. Era como se um veneno fosse injetado no seu corpo vagarosamente.
O céu estava ficando cada vez mais azul nessa hora.


Loveh abriu os olhos, assustada. Odiava se lembrar desse episódio trágico, odiava lembrar do nó na garganta quando Olga caiu morta, odiava lembrar dos tons de azul que tingiam o céu naquele momento, e detestava se recordar até mesmo do alívio que sentiu quando perceberam que Ophelia já não mais acordaria.
O sol estava ficando mais fraco, mas não era sequer quatro horas. Era um calor agradável, quase não havia nuvens ou frio. Deu um leve sorriso, esperando descansar o bastante para voltar ao seu castelo de cristal, onde morava, longe e perto dos domínios das fadas. Não se incomodava mais quem seria a Rainha, pois ela mesma não queria ser a Rainha e não se submetia a nenhuma lei. Fazia o que bem entendesse, e as fadas entendiam isso. Até hoje.
Agora que a Rainha tinha poder suficiente, será que Loveh ainda podia ter a sua autonomia garantida? Será que ela não seria perseguida, vista como ameaça igual a Ophelia? Agora já tinham comprado a briga... sentiu a energia de alguém voltando, provavelmente Miih.
Miih podia voltar. Todas elas podiam recuar agora, mas Loveh sentia, no seu íntimo, que isso já não adiantava mais. Havia comprado a briga, havia atacado Ophelia, havia se unido a Siih. Não importa que perderam, Ophelia ainda sentia as cicatrizes da estranha aliança.

Como deveriam agir, então?

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