Existe uma certa crueldade que nos faz manter vivos. A crueldade nos faz levantar a cada vez que levamos um tombo, a crueldade nos faz superar os obstáculos da vida e seguir em frente, a crueldade nos faz ignorar as vidas alheias carregadas de tragédia.
Conseguimos viver dia após dia, mesmo sabendo de pessoas que estão se afundando em um mundo cada vez mais triste.
Conseguimos nos levantar a cada tapete puxado, não importa por quem. O que importa é que levantamos, ficamos em pé e encaramos de frente.
Como se fossêmos contra um vento muito forte, é assim que a crueldade move a gente.
Não é cruel quando você perde algum amado, mas ainda assim persiste em viver?
Não é cruel quando você vê que existem pessoas que precisam de ajuda, mas ainda assim você as ignora e consegue ser feliz?
Não é cruel quando o céu está cinzento, mas você insiste em ser cor-de-rosa?
Não é cruel?
A crueldade move a raça humana, pessoas que conseguem sorrir mesmo quando está tudo em ruínas. É uma raça fracassada que insiste em viver todo dia, lutando contra a própria natureza, evitando a morte a qualquer custo. É uma raça fabulosa em se destruir, destruir os outros e que ainda assim consegue ser feliz.
Como as pessoas conseguem?
Felizes a todo instante, mesmo quando são compostos por tragédias pessoais e melodramas mexicanos. São pessoas tristes que mentem o tempo todo para si mesmas, são pessoas que resolveram encarar o céu azul todo dia.
O coração se aperta a cada problema, mas melhor não pensar nisso.
Somente se levantar a cada tombo.
Isso é tão cruel.
Como Siih podia estar tão serena ao ver o corpo de sua assistente ser erguido?
Como Siih podia estar tão tranquila ao ver o fogo se acender debaixo da tábua de madeira?
Como Siih podia estar tão resignada ao ver que estava completamente destruída por dentro?
O sol estava alaranjado nessa hora, e Siih teve que se servir de toda a sua crueldade capaz de mantê-la em pé para assistir à cerimônia. Ela se recusou a fazer qualquer coisa, e ignorou os olhares. Somente olhava para o vazio, e tudo era um borrão tão confuso, de pessoas borradas sem nome. E um céu que era bonito, mesmo borrado. Tão bonito, tão laranja com aquele rosa que dava o acabamento perfeito.
- Vossa Majestade?
Era mais alguém que dava os pêsames. Ela não ouvia realmente, sequer olhou para a pessoa. Somente fitava o céu, seus olhos aparentando estar tão tranquilos, mas qualquer perceberia que tudo o que Siih queria era se atirar da torre mais alta que o castelo tivesse. Mas não fazia isso, contrariando seus próprios instintos. Seus pés insistiam em ficar onde estavam, seus olhos não desviavam do céu mesmo que houvesse uma guerra.
- Irmã?
Siih foi sugada do céu para a realidade, mas continuou imersa em devaneios. Conseguiu focar um pouco no rosto do irmão, e reparou que ele parecia muito preocupado. Coitado, ela não pôde deixar de pensar.
Seu braço doeu por um instante, e o vestido lhe deu uma sensação de sufoco. Ela se virou para Lefi, os olhos muito apagados.
Eu recuei muitos passos para mentir
Mas agora eu estou aqui
Entregue a você
- Irmã? Você... está palida - Lefi completou sem nenhuma emoção, somente procurando algum vestígio de alegria nos olhos de Siih. Ela deu um leve sorriso, tão falso que completou a perfeita máscara de tranquilidade.
Siih olhou para o céu novamente, tentando encontrar aquele laranja e aquele rosa que a acalentou lentamente, que a tranquilizou por breves momentos. Mas o rosa deixava de existir vagarosamente, dando lugar ao azul. Não o azul do meio-dia, o azul que assistiu a sua maior derrota.
Mas um azul-safira tranquilo que se deixava ser bordado por estrelas, um azul que permitia a Siih um pouco de paz.
O fogo consumia o corpo de Libby devagar, junto com seus pertences. Atrás do fogo, Ophelia não sorria, muito menos Lala. Os cabelos de Lala pareciam flamejantes, devido ao laranja do céu que se apagava e ao fogo. Ophelia estava de pé e fizera questão de começar toda a cerimônia, como uma penitência. E Siih nada fez para impedir o absurdo da assassina reger o funeral da vítima despedaçada.
Como Siih podia cuidar de alguém se estava tão destruída por dentro?, era a dúvida que consumia a mente de Alicia.
Todos me falaram para eu parar
Mas eu não fiz, e agora?
O que você vai fazer?
Não importa o que falassem, o que achassem, o que vissem. Alicia sabia de como Siih se consumia diariamente naquela função que ela odiava, de como Siih tentava fazer bem-feito mesmo que simplesmente quisesse mandar todos se danarem. Como pode uma Rainha não amar seu ofício? Como pode uma Rainha ignorar os maiores segredos de sua própria família? Como pode uma Rainha se odiar por não parar com toda aquela monstruosidade?
E como Alicia podia ajudar em uma situação que ela se via sem saída?
Ela vira sua colega de trabalho, a menina com quem compartilhou a atenção da Rainha durante meses, ser estraçalhada como uma formiga. E agora essa colega era consumida pelas chamas, e sentia que era hora de fugir. Mas ninguém deixaria, e ela mesma não queria. Queria ficar longe, mas sabia que não poderia amargurar a culpa de deixar pessoas sozinhas.
Engoliu em seco.
Por que eu não morri de uma vez?
Contrariando a minha lei?
E estou submissa a você
- Siih, vamos embora - foi tudo o que Lefi disse.
Siih sentiu ser puxada por mãos fortes e masculinas, mãos decididas que a levaram para dentro do palácio e a guiaram por escadarias até o seu quarto. Sentiu essas mesmas mãos a sentarem na cama, e a abraçarem fortemente. Siih enxergou o próprio quarto e percebeu que o espelho refletia seu olhar tão vazio de sentimentos.
Ninguém se incomodou com a ausência da Majestade, pois a lei é bem conveniente a uma Rainha: ela faz o que quer na hora que quer. E todos interpretaram a ausência inesperada como um sinal muito profundo de luto.
Siih passou as mãos no cabelo e desabou na cama, olhando fixamente para o teto.
As últimas horas passaram como flashes diante de seus olhos. Saíra daquela torre e simplesmente tomou banho, escolheu a roupa e esperou ser chamada. Não falou com alguém, e se recusou a comer algo. O sol se tornara meio quente a cada hora que se passava, e o silêncio se instalava de forma cada vez mais lenta. Era simplesmente maravilhoso ficar só, confortada pelas próprias lembranças.
Precisava desse tempo, precisava de alguma esperança. Mas ela se esvaía a cada segundo, então se concentrava em ler documentos que não lera há dois anos. Papéis amarelados, contando todos os podres da família real. E as palavras ainda a confundiam enormemente.
Saldo de 40 fadas mortas.
Feitiço Ilusionista renovado, 450milhões de Glombs Encantados.
Encanto de Ilum renovado: condições completas do Encanto...
Siih olhou pela janela, vendo o azul se tornar cada vez mais escuro. O sol deixara de existir, e sentia frio em seu vestido com um tecido absurdamente fino.
- Vá embora - disse - me deixe sozinha.
- Irmã...
- Me deixe em paz.
- Mas...
- VÁ!
Lefi não insistiu mais. Somente saiu do quarto, deixando a irmã ficar olhando o negro céu.
Era tarde para descobrir os segredos e lutar agora.
Era tarde demais.
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Alicia se sentiu extremamente irritada ao ser acordada por Lala às três da manhã, o castelo em sombras, para mandar uma festa particular que envolvia a renúncia de Siih e a definitiva vitória de Ophelia. E a única assistente da ex-Vossa Majestade fez uma anotação mental para que não mandasse mais Lala para aquele lugar, mesmo que fosse totalmente inconsciente. Agora sentia medo de uma futura ira de Lala.
Ela fez os Glombs trabalharem duramente, desenrolando tapetes vermelhos, arrumarem milhares de pétalas de rosas vermelhas, passarem um vestido todo branco, roxo e dourado, iluminarem todo o castelo com bonitas e finas velas brancas que emanavam um fogo confortável, e servirem uma ceia exuberante, com muito vinho e leitões com maçãs na boca.
E foi Alicia quem acordou Siih e a fez vestir um simples vestido negro, e depois acordou Lefi, contrariando os próprios principios de não entrar em um quarto pertencente a um homem. Ela o acordou, avisou sobre Ophelia e voltou para organizar tudo.
Em questão de minutos, longos minutos que se arrastaram impacientes, tudo estava pronto e Ophelia esperava por Siih na Segunda Torre.
- Ophelia - Siih disse, e viu todo a cerimônia.
Ophelia no centro, Lala à sua esquerda e Lefi à sua direita, e Alicia na direita de Lefi. E um tapete vermelho que se estendia pelo quarto corredor.
- Entre nessas salas e pegue a coroa - Ophelia sussurrou docemente.
Siih queria xingar, bater o pé, se recusar. Mas algo lhe dizia que era melhor se submeter ou algo de mais aconteceria. E ela não suportaria outro funeral.
- Está bem - disse.
A primeira porta era a Sala de Bronze, a segunda a Sala de Prata, como descobriu.
A primeira porta dava para uma sala toda avermelhada, onde até mesmo o carpete era vermelho e no centro, uma mesa de madeira com um livro vermelho também. Era sufocante pela vermelhidão e Siih não quis ler o livro.
A segunda porta era uma esplêndida sala de estatuetas belíssimas e troféis. Tudo de cristal, com carpete prateado. Siih pensou ter sentido o olhar frio e vigilante da mãe naquela sala, e fez questão de sair daquele aposento claustrofóbico o mais depressa.
A terceira porta era a Sala de Ouro.
Circular, toda branca com uma mesa de mármore no centro, também circular. E a coroa brilhante, deslumbrante.
O ouro com diamantes, formando uma linda combinação. E em volta, estantes brancas cheias de coroas. Siih reparou que as coroas mais bonitas e trabalhadas ficavam ali, e decididamente nenhuma de suas tiaras era tão bonita como aquelas coroas. A mais bonita entre elas, tirando a principal, era, claro, a de ouro com rubi, formando arcos repetidos.
Pegou a coroa principal, de ouro e diamante, sentindo o peso da decisão.
- E se eu não quiser dar a coroa? - perguntou, quando ficou diante de Ophelia, esta maravilhada com a beleza do acessório.
Ophelia parou para pensar antes de responder.
- Será o prato principal da ceia. Você acha que tem um gosto bom?
Siih não resistiu.
Entregou a coroa e se entregou à Ophelia.
Renegou seus poderes, e o seu passado.
Sentiu a preocupação de Alicia e a decepção de Lefi.
Sentiu a frieza de Lala e a vitória de Ophelia.
A coroa deixou suas mãos para decorar os cabelos castanhas de Ophelia que rodopiou levemente, fazendo o vestido girar perfeitamente.
Era como se um fardo deixasse suas mãos e seus ombros, e era como se os fantasmas exigentes se calassem diante da renúncia. Siih se ajoelhou diante de Ophelia, e enterrando toda a sua amargura e orgulho, renunciou ao cargo.
Por escolha própria, cedeu os poderes adquiridos na condição de Rainha. Trocou a própria vida pela soberania de Ophelia, e nem se arrependeu. A promessa de se vingar de Libby ainda era maquinada na sua mente, e Siih sabia que um dia ela que ficaria de pé, com a coroa de ouro e diamante. O Conselho fora destruído, onde estariam aquelas fadas?
Era absolutismo, onde a Rainha fazia o que quisesse.
E Siih fazia o pior e o melhor.
Ophelia sorriu, se sentindo gloriosa ao sentir a humilhação de Siih nos seus pés. E dando outro sorriso, se curvou para todos, e magnificamente
sussurrou:
- Agora sou a Rainha.
Siih não chorou, seus olhos frios como pedra.
Lala não sorriu, seus olhos penetrantes como punhais.
Lefi não disse uma palavra, seus olhos fitando a irmã gelada.
Alicia não decidiu resistir, seus olhos fitando a nova soberana deslumbrada.
Pois agora Ophelia era a soberana e toda a luta fora inútil.
E agora você venceu.
N.A.: fim melodramático e curto para a primeira fase. Sinto muito pelo fato de as Campinas não aparecerem. Mas fiquei 100 minutos tocando instrumentos (pandeiro, agogô, 'tantan' - algo assim - e tamborim) e meus dedos doem absurdamente, ok? ù.u
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