E quem sabe, um dia voltarei
Voltarei para ficar aqui
Foi a última frase entoada por Yohana naquele show. A última frase coerente e ritmada com a sua voz afinada. Porque de repente se viu em um lugar destruído. Não entendia, mas as estrelas foram apagadas pela fumaça e pelo pó, os gritos alegres foram substituidos pelo pânico. Alguma coisa aconteceu. Alguma coisa.
- RAVENEH! - gritou Johnny, olhando em volta. Raveneh respirava com dificuldade por causa de todo o pó, colocando a mão na barriga. Tinha só seis meses de gravidez, se acabasse parindo agora, ia ser fatal. O bebê poderia morrer, e nem em sonho, ela pensava nisso.
- J-Johnny - tremeu Raveneh - a energia da garota... ela é poderosa demais...
Bia que estava no meio da bagunça ficou em pé, mesmo quando tudo foi destruído. Pôs a mão na espada, olhando em volta procurando o motivo da destruição repentina. Umrae pousou as mãos sobre as adagas escondidas, Kibii ajeitou o arco, Fer arrancou o primeiro punhal, Tatiih ficou junto com Rafitcha olhando em volta e procurando um lugar para sair.
- Voltem para as Campinas! - Maria gritou com seu porte decidido - Raven, acalme os cavalos! Johnny, recolha Raveneh e a proteja! Umrae, proteja Raveneh! Bia, Kibii, Fer, venham! Tatiih, vá junto com Raven! Ly e Doceh, acompanhem Tatiih!
O grupo correu, ignorando o burburinho. Raveneh olhou para o lado, sendo interrompida por Johnny que a queria levar para o lado contrário. Não desviou o olhar, pois conseguiu enxergar no meio de toda a poeira uma criança com olhos castanhos, cabelos amarrotados e um vestido que nem o mais maltratado dos escravos usaria. Mas ainda tinha no seu olhar a elegância de alguém que outrora poderia se comparar a uma rainha.
- Venha, Raveneh! - exclamou Kibii preocupada - Umrae vai lhe proteger.
- É ela - murmurou Raveneh apontando para a criança - ela que causou isso tudo.
Yohana estava apavorada. Desceu do palco, tentando fugir.
- Hey! - gritou alguém em quem trombou. A garota sorria bondosamente.
- Desculpe... - disse quase em lágrimas - desculpe...
- Hey, você não é a Yohana? - disse Tatiih com seu olhar bondoso - venha com a gente.
- Hã? - fez Yohana - mas...
- Tem uma saída - disse Tatiih - estou com amigos.
Yohana ainda assim parecia uma princesa. Sorriu, curvando-se com cerimônia, agradeceu. Mas no meio daquele pânico, ninguém percebeu, somente Tatiih que a puxou para fora.
Enquanto isso Kibii suspirou e disse com raiva:
- Pois bem, vou dar uma sova naquela al--
- Não - Bia a segurou - você não a conhece. Ela é a chamada Ophelia.
A boca de Kibii tremeu, assim como Johnny que arregalou os olhos.
- O-Ophelia? - murmurou Kibii - a Musa Adormecida? A-Aquela...
Olhou para a criança que olhava o quadro do pânico com um prazer escondido no olhar.
- Mas... achei que fosse uma lenda - murmurou Johnny.
- Vamos - afirmou Bia - melhor sairmos daqui. Raveneh está grávida, não pode ficar aqui. Você tem algum lugar para onde ir, Raveneh?
Raveneh parou, estupefata. E aquele documento lhe voltou a memória. Não, Campinas era seu único lar e não queria sair dali. Mas...
Johnny interrompeu:
- Que está dizendo? Não temos que ir embora! - gritou.
- Ela vai destruir tudo! - protestou Bia - Raveneh tem que ser protegida! Ela é a sua esposa e está com uma vida no ventre!
Johnny não pôde argumentar diante de tal afirmação e saiu na frente, quase sendo empurrado pelas pessoas.
Todo o grupo encontrou os quatros cavalos que relinchavam, mas com a ajuda de Raven se tornaram mais calmos. Todos se meteram dentro da carruagem com esforço, depressa demais, se assustando com a visão da praça destruída.
- O que Yohana está fazendo aqui? - indagou Maria de repente, ao reparar que a cantora estava sentada ao lado dela.
- Errr--- - fez Yohana espantada e com medo. Será que a expulsariam dali? Porém, Tatiih interveio:
- Ela estava fugindo, e eu a ajudei.
- Fez bem - parabenizou Raveneh segurando a enorme barriga.
- Vai! - gritou Raven - ninguém está faltando? VAI!
E de repente, alçaram vôo tão depressa que nem mesmo a Ophelia, a pequena criança que destruiu ruas e ruas em um segundo, conseguiria contê-los.
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- Ah, mas ela já fez baderna... - suspirou Miih - ela é impossível de se conter!...
- Vamos esperar os humanos nos pedirem ajuda, certo? - afirmou Loveh - então não se preocupe com isso. Você sabe que faz jus ao seu título.
Miih sorriu. O céu estava esplêndido, com todas as estrelas brilhando sorridentes.
- O que ela fez exatamente? - se perguntou Miih em voz alta, tentando avaliar os danos, com quilômetros de distância.
Loveh fez uma reverência delicada, e respondeu polidamente:
- Ela destruiu uns 51% do bairro Jearinne, na capital.
- Descobriu graças aos ventos? - riu Miih - você melhorou bastante, saber disso com tanta exatidão.
- Sim, Miih - sorriu Loveh - vou ficar sozinha um pouco. Até logo.
- Até - fez Miih, pensativa.
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Ophelia não sabia mais o que fazer. Havia destruído tudo a sua volta. Arruinara o que era para ser um divertido show. Fizera uma noite inesquecível para as pessoas presentes. Dera material para revistas e jornais sensacionalistas. Apavorara pessoas achando que houve mortes.
Entediou-se.
E novamente, levada pelo conforto e pelo doce perfume das florestas, voltou. Correu velozmente, que ninguém podia sequer avistar a sua sombra: só via um borrão marrom (por causa do seu vestido). Mas quem conseguisse vê-la, veria um sorriso e um olhar iluminado. Ela estava feliz.
Ela estava viva. Podia ouvir seu coração batendo, o sangue correndo pelas veias junto com a magia, tão poderosa e ardente. Um dia queria morrer por tamanha carga de poder que recebera, agora só queria aproveitar e ser tratada como rainha. Tinha poderes para tal.
Queria ser uma Rainha, poderia reclamar a respeito disso. Tinha que ficar melhor: seu vestido estava intragável, estava suja e seu cabelo precisava ser lavado e escovado.
Sorriu mais ainda.
Podia sentir a brisa da noite bater em sua face, conseguia sentir até fome. Podia preparar algum coelho para comer.
Estava viva.
Só quem nasceu, viveu, morreu e renasceu...
... sabe o quanto é valioso aspirar o delicioso perfume das árvores e sentir a fome.
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Yohana tiritava de frio e medo.
Talvez você ache estranho uma cantora sumir assim nem mais nem menos, sem ninguém gritar por ela ou qualquer coisa do tipo. Acontece que nesses tempos uma cantora era realmente igual a pessoas comuns e anônimas. Hoje em dia os cantores tem mania de dizer que são pessoas normais, mas obviamente eles não: são famosos, belos, ricos e todo mundo quer ser igual a eles. Gente assim nunca pode ser normal. Mas naqueles tempos ninguém protegeria Yohana, a não ser que ela pagasse por isso. Acontece que Yohana nunca pagava por segurança, portanto não seria salva por ninguém em tempos de urgência. Só se a sorte estivesse ao seu lado, o que aconteceu realmente, quando ela na hora de fugir, esbarrou com Tatiih.
- Yohana, quer um manto? - ofereceu Maria erguendo um manto escuro, de algum tom de cinza que Yohana não conseguia identificar. Ela só sorriu, e murmurando um "sim", aceitou o manto.
Melhorou muito depois disso.
- Ophelia - sussurrou Bia - melhor arranjarem um abrigo.
- Aquilo é só uma lenda, ok? - exclamou Johnny - Ophelia não é esse monstro! Aliás, nem existe Ophelia! Era só uma criança super-poderosa fazendo arruaça!
- Ophelia existe sim - teimou Bia - ela existiu e acordou. Melhor se mandarem.
- Ah, claro! - zombou Johnny - e o Papai Noel também existe, certo?
- Mas como não consegue compreender? - gritou Bia - eu senti... Eu senti aquela menina! Ela não quer somente destruir tudo...
- Que prendam a garota, a Rainha tem poderes pra isso! - argumentou Johnny.
- Ah, seu... - fez Bia, mas foi interrompida por uma voz feminina:
- Quem é Ophelia?
Raveneh havia perguntado com serenidade e simplicidade, com seu olhar doce. Sorria. Mas todos ficaram em silêncio, mal lembravam que Raveneh vinha de uma terra que expulsara todos os seres mágicos e vivera somente entre humanos, logo não conhecia as lendas mágicas. Kibii e Doceh morderam os lábios inferiores, Fer baixou o olhar, Umrae começou a roer a unha do polegar, Tatiih passou a remexer no seu vestido, Maria revirou os olhos como sinal de tristeza. Ly e Raven não demonstraram nada, nem Yohana que só se aquecia no manto.
Bia suspirou e começou.
- Bem. De tempos em tempos, uma fada nasce mais poderosa que o normal. Isso é comum, e nada que mereça muito interesse. Mas existem duas categorias que recebem especial atenção: fadas altas e uma classe que não tem nome. As fadas altas são fadas que nascem com poderes anormalmente grandes, mas vivem pouco. Porém podem abdicar dos seus poderes e viver mais. A classe que não tem nome é uma ainda especial: em toda a História, só teve umas onze assim, creio. São fadas cujos poderes se equiparam aos deuses, e hoje existe exatamente oito, eu acho. Mas a grande diferença entre essas fadas e as fadas altas é a resistência do corpo: ao passo que o corpo de uma fada alta não resiste e cede a morte, o corpo de uma das sete fadas só se rejuvenesce a todo instante, como se fosse jovem o tempo todo. A resistência, a imunidade a doenças é absurda. Como já falei, existem sete: Miih, Loveh, Catherine, Sunny, Elyon, Alice, Louise. Como o passar do tempo, elas foram se especializando em alguns setores da natureza: Miih passou a ser a Rainha das Trevas, Loveh controla os Ventos, Catherine vive com os Oceanos, Sunny prefere a Luz, já Elyon vive no Submundo e controla. Alice gosta das Florestas e Louise mexe com as Chamas. E antes havia a Olga, que aprendeu os segredos das estrelas ... Se lutassem, iriam se destruir e destruir o ambiente e as outras pessoas por perto. Se dividiram de forma organizada, e em algumas tribos são tidas como deusas. São chamadas de "Musas".
Bia respirou um pouco antes de continuar.
- As, na época oito, Musas não brigavam entre si. E como se tornaram ociosas porque não havia nada a fazer, passaram a ter como missão proteger os humanos ou ter alguns objetivos. Não importa. Mas chegou a Ophelia... Ophelia podia se tornar a Musa Suprema, tamanho era o seu poder. Mas era uma criança, ingênua e foi manipulada pelo gênio terrível e ambicioso da mãe, que a fez destruir tudo e competir com as Musas. As oito Musas entraram em ação, e foi a guerra mais absurda que teve. De uma hora para outra, todo o Reino das Fadas desmoronou, Heppaceneoh ruiu - naquela época se chamava Jubilah - as pessoas que moravam nas Campinas morreram, restaram muitos poucos sobreviventes que repassaram a história. Enfim, foi tão terrível que os sobreviventes nunca mais se recuperaram. No final, Elyon se encheu. Ela gostava de paz e sossego, e odiava perder. Toda a família de Ophelia já estava morta, só restando a mãe e a irmã mais velha. Elyon sequestrou a mãe e a irmã de Ophelia, o que a fez parar. Mas não foi o suficiente. Miih tomada de raiva por Ophelia, disse que a única saída era deixar de existir porque Ophelia nunca seria aceita entre elas. Catherine se chocou, Loveh balançou a cabeça. Mas ninguém podia condenar Miih por isso: Ophelia era só uma criança e demonstrava que não iria ser exatamente muito controlada. A mãe gritou para que Ophelia não consentisse, e não parasse até matar todas as oito Musas. Ophelia, obedecendo a mãe, se remexeu. Elyon, então, apunhalou a mãe com suas próprias mãos, com requintes de crueldade. A mãe morreu pagando todos os pecados que cometera. Ou não, sofreu pouco para o que causou. Ophelia arrasada, se deixou cair. Olga, a que sabia os segredos das estrelas, a fez adormecer, então. Porém Ophelia não se deixou render tão fácil... Resistiu com violência, e Olga acabou por se sacrificar. Não sei bem os detalhes, pois eram poupados das pessoas que ouviam. Mas quem contou a história para mim disse que Olga morreu de forma tão violenta, tão terrível que as outras Musas se apiedaram e se enfureceram mais que o normal. Mas a morte de Olga aconteceu porque ela fez Ophelia dormir a força. Ophelia foi levada a uma câmara selada, e lá ficou durante anos. As Musas restantes fizeram um memorial para Olga descansar em paz.
Bia ficou em silêncio. Porém Raveneh tinha uma dúvida:
- E a irmã mais velha de Ophelia?
Bia deu de ombros:
- Ninguém sabe. Provavelmente fugiu. Talvez tenha conseguido superar, talvez tenha se matado.
Raveneh se silenciou. A história era bastante longa, mas não se importava. Aquela criança era a Ophelia. Ophelia que dormiu durantes anos a fio, traumatizada com a destruição que fizera, enfurecida com o assassinato da mãe, preocupada com a irmã, odiando as outras Musas e quem sabe, arrependida pela morte da Olga. Fechou os olhos, triste, deixando-se ser confortada por Johnny.
Todos ficaram em silêncio até aterrizarem nas Campinas, e todos preferiram se refugirar na grande cabana de madeira onde cabia todos. Queriam ficar juntos até na morte.
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Elyon acordou, seu corpo doendo. Ela acordara, já se movera, já fizera bagunça.
Mais do que Miih, Loveh ou qualquer uma semelhante, é a ela que Ophelia queria. Se a menina entrasse em confronto com ela, o que haveria. Só tinha uma certeza: uma das duas ia acabar morta, pois se recusaria a perder. Ou ganhava ou morria.
Passou as mãos nos seus cabelos, nervosa. Poderia pedir ajuda a Catherine, quem sabe, e assim venceria o iminente confronto. Catherine era a sua amiga leal assim como Loveh e Miih eram amigas sempre unidas, porém os mares chamavam a Catherine tantas vezes que quase nunca se encontravam.
Levantou-se, arrumou o vestido delicado, andou. Estava escuro, provavelmente já era madrugada. Vivia no submundo, era o que diziam. Diziam que ela era uma feiticeira que falava com mortos e manipulava espíritos. Talvez seja verdade. Talvez a alcunha "Elyon, Rainha dos Mortos" esteja certa.
Talvez.
Em algum lugar por perto, estava um túmulo. Claro, morava quase ao lado de um cemitério.
Aqui Jaz Jakeline Moore
Esposa e Irmã amada
Não.
Aqui Jaz Jack Po
Marido que faz falta
Não.
Aqui Jaz Emmeline B.
Amante eterna.
Não.
Aqui Jaz Olga
Aquela que salvou a Humanidade.
Sim.
As margaridas repousavam em cima do túmulo, já murchas. Diziam que ela falava com mortos, mas não passava de um mito. É verdade que podia encontrar um ou outro espírito, mas não podia convocá-los e se odiava por isso. Queria que Olga voltasse, aquela garota animada e sonhadora que queria ajudar todas as crianças do mundo. Trocou as margaridas por um botão de rosa vermelha, tão singelo quando Olga era.
As lágrimas vieram salgadas como sempre, lágrimas amarguradas e culpadas. Se não tivesse matado a mãe da Ophelia, será que ela se tornaria tão mais furiosa a ponto de exigir a morte de Olga para adormecer?
Enxugou os olhos. Não adiantava mais.
O sacrifício de Olga tinha que valer algo. Algo.
Ela se sacrificou para que humanos pudessem reconstruir a sociedade, para que as Musas pudessem viver sem ter que abaixar a cabeça a ninguém. E agora Ophelia acordara, e o sacrifício da amiga podia ir por terra abaixo. Fechou os olhos, jogou a cabeça para trás. Ela mataria Ophelia.
Por ela, pelos humanos, pelas amigas, pelos inocentes.
Por Olga.
E no próximo capítulo...
- Mas você vai aceitar ir para a sua terra, Raveneh? - indagou Maria pasma.
- Eu quero acabar com tudo logo, Maria - disse Raveneh - estou cansada de sofrer anos a fio. Tive dois anos de paz, e realmente não queria acabar com eles.
- Mas... - Maria parecia hesitante a permitir que Raveneh saísse daquelas terras de tanta paz - você vai com quem?
- Johnny vai me acompanhar, é claro! - Raveneh sorriu, contente por Maria se preocupar tanto - não irei sozinha.
- Acho melhor que mais alguém lhe acompanhe - murmurou Maria - e alguém que possa lhe defender. Johnny não vai poder lutar por você.
- Maria, por favor... não precisa... - Raveneh disse em um fio de voz, constrangida.
- Sim, você precisa. Acho que Rafitcha gostaria de lhe acompanhar, ouvi dizer que ela prestou algum curso na área jurídica quando era estudante. Alguém que saiba lutar...
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