terça-feira, 19 de agosto de 2008

Parte 53 - As voltas que a vida dá.

Dez e cinco da manhã. Dez e cinco da manhã, e o sol estava ameno, atendendo às expectativas de outono. E o palácio era lindo, grandioso, perfeito. Mas aos olhos de Gika, estava puramente decadente. Completamente, completamente triste, se curvando a uma majestade que ousava ser mais poderosa que tudo e mais um pouco. Era tão triste, era tão estranho voltar à aquele lugar.
Quando as últimas lembranças eram até um pouco felizes, mas agora duvidava seriamente de que seria feliz ali dentro.

Se perguntou como estaria Siih. Siih, Lefi! Lefi, ah!, aquele rapaz gentil que sempre acompanhou Siih, como o segundo rei, sempre tido como fiel conselheiro, amigo e irmão da Rainha. Mas agora a Rainha mudara. E ela atendia pelo nome de Ophelia e Gika não queria se acostumar com isso. Lembrava-se da bondade e inocência de Siih, a quem servira com verdadeiro amor, e achava que Siih não merecia tudo aquilo. A mãe dela, talvez, mas a filha não. A filha, Siih, nunca.

Entrou no castelo. Devia era tentar fugir, mas sabia que iria, no mínimo, morrer se tentasse. Sabia que Ophelia tinha recrutado uns demônios mais inofensivos como soldados em todo o reino, e se ferraria profundamente se não desse as caras no palácio esta manhã. E podiam chamar Gika do que for, mas ela não se incomodava: tinha mais amor à própria vida do que amor à sua própria honra.
- Quem é você? - uma voz perguntou assim que ela entrou no castelo.
O salão grandioso, circular, vazio. A voz ecoava pelas paredes redondas, fazendo soar sua educação. Não tinha isso anos atrás, quando ela servira. Você simplesmente entrava no castelo e pronto, nem precisava ser lá muito anunciado. De fato, Siih não era muito organizada.
- Eu sou Gika - respondeu a fada - eu vim aqui a mando de Oph-- Majestade.
Reparou que estava tremendo.

A voz então disse:
- Vá pela terceira porta e encontrará Vossa Majestade à sua espera.
Gika olhou em volta, reparando que havia portas. Talvez umas seis ou sete. Cada porta era elegante, em cima uma minúscula estatueta de uma mulher semi-nua, olhando fixamente para o centro, figurava. Essas estatuetas eram estranhas para Gika. Prestando um pouco de atenção, reparou que todas as estatuetas tinham as unhas como garras e os olhos eram quase felinos, maldosos. A anatomia bastante simplificada de um bom demônio.
Escolheu a terceira porta, e entrou nela. Outro salão, dessa vez retangular. Atrás do elegante trono, a janela com vitrais coloridos que filtravam toda a luz tímida do sol. Ao lado direito de Ophelia, Lala estava de pé, suas roupas completamente negras e a maldosa espada na mão. Do lado esquerdo, Siih estava ajoelhada, se portando de forma ereta, nunca se rendendo completamente. Sua roupa era simples demais, com as mangas meio que bufantes, seus braços nus e aquele cinto meio estranho. Roupa de empregada servil, reparou.
- Eu estava te esperando, Gika B. - sussurrou Ophelia.
E a maldade e alegria que consistiam em seu sorriso e voz foram simplesmente impossíveis de descrever.

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Sunny acordou, talvez se sentindo tranquila, embora a culpa lhe mordesse a todo instante.
Os cabelos quase brancos sempre estavam despenteados, e a estranha luz que irradiava havia diminuído. Se remoía de culpa por deixar a Siih sozinha, e assim uma amizade meio que frágil se destruindo.
- Como está? - perguntou Catherine, sempre gentil, sempre sincera. Ela tinha nas mãos uma xícara de chá e deu à amiga.
- Péssima - admitiu Sunny bebericando do chá dado por Catherine - Ophelia está acabando com tudo... ela...
- A humanidade é intragável mesmo, não é? - Catherine disse, olhando para o redor - esse é um belo palácio.
- Escondido dentro de uma caverna - riu Sunny - que belo lugar para ficarmos.
- Miih decidiu que era melhor vivermos em sociedade - sussurrou Catherine - então vamos obedecer à ela.
- Louise não concorda em "obedecer" à Miih - Sunny observou, ao que Catherine deu um sorriso zombateiro:
- Deixe disso. Louise gosta de brincar com fogo. Termine seu chá.
Sunny não disse mais nada. Viviam todas as sete naquele estranho palácio, criado meio que a força dentro de uma caverna bem espaçosa. Mas o mais estranho não era o lugar. Era simplesmente o fato de compartilharem o mesmo espaço.

Loveh não se sentia estranha em dividir a moradia com Miih, já que as duas eram amigas. E Elyon que vivia com Olga como amigas, já tinha alguma experiência. Sunny que de vez em quanto encontrava Alice ou Catherine, também não achava a experiência de todo estranho. De fato, quase todas sabiam como era viver com uma amiga. Mas todas tinham temperamentos solitários, difíceis de combinar. E as sete viverem ali era muito estranho. Se o motivo que as fez viverem juntas não fosse trágico, a experiência podia ser até cômica.

Era estranho discutir o que há para o jantar, quando cada uma tinha um hábito distinto. Elyon, por exemplo, caçava o que havia para comer enquanto Loveh preferia armazenar a comida e ir aos poucos. Detestava caçar. E Miih era vegetariana, de modo que desprezava as carnes. Loveh já havia aprendido a cozinhar algo para a amiga, a aprender a viver sem carne, mas e as outras como Louise que tinha uma predileção por carne de lagartos? E todas dormiam em horários diferentes.
Elyon detestava dormir de noite, assim como Miih. E Louise achava muito bom fazer a maior parte de seus venenos durante o pôr-do-sol, e assim estragava o sono de beleza de Catherine que sempre dormia entre quatro e sete da tarde. Era comum brigas por coisas idiotas como o jantar do dia, ou os horários para se fazer barulho e coisas do tipo. E certas rivalidades que existiam entre algumas não podiam deixar de existir meramente pela convivência.
- EU ODEIO A DESGRAÇADA DA MIIH! - gritava Louise, seu grito ecoando pelas paredes.
- O que foi agora? - perguntou Sunny, encarando Catherine - a culpa é de...
- Miih - Catherine sorriu. Sempre teve mais simpatia por Elyon do que por Miih, o que a fazia ser tremendamente parcial nas briguinhas infantis entre Miih e Louise.
- O que foi agora? - berrou Loveh, quase que surgindo ali no corredor - dava para ouvir seus gritos do outro lado do palácio, francamente!
Louise bateu o pé, bufando de raiva. Ao mesmo tempo, Sunny e Catherine foram para o corredor. Só havia a Loveh e a Louise, mas a "dupla da paz" estava reunida. A "dupla da paz" era como as outras chamavam Loveh e Sunny que tinham os temperamentos mais calmos e tranquilos, capazes de ceder o que for para tranquilizar qualquer pessoa.
- Prooooonto! As chatinhas da paz! - gemeu Louise - porque vocês não dissem para mandar a Miih para aquele lu--
- Não fale um negócio desses! - repreendeu Loveh - que coisa feia, Louise, uma Musa se rebaixando a usar palavreado de baixo escalão!
- Ah você também! - Louise sussurrou - a Miih é uma chatonilda e vocês vem com essa!
- O que aconteceu? - Sunny perguntou, bebericando o resto do seu chá.
- O QUE ACONTECEU? - Louise estava ensandecida - O QUE ACONTECEU?
Louise veio e como um jato derrubou a xícara de chá no chão, quebrando a frágil peça. E o líquido quente se espalhou pelo chão, esfriando depressa. Mas Sunny não se incomodou, somente olhando Louise nos olhos.
- Aconteceu que a Miih, aquela vadia, simplesmente disse para--
- Você realizar seus malditos experimentos em outro lugar, parar de criar lagartos porque eles estão invadindo o meu quarto e pronto - Miih entrou no corredor, sua voz indizivelmente fria.
- Ah, então omite a parte que você simplesmente botou fogo no meu laboratório, e assim meses de trabalho foram destruídos? - Louise sibilou.
- Ah. - Miih parecia um tanto surpresa - não omito não. Admito. E você não pode esquecer que você simplesmente botou aquelas malditas salamandras na estufa, destruindo assim todos os legumes? Cheguei a tempo de salvar um pouco da metade.
- Você fez isso, Louise? - perguntou Loveh espantada.
- Se as duas fizeram isso mesmo, então estão quites e não há motivo para tanto barulho - opinou Sunny - então pronto.
- Ah, então ela vai ficar impune? - Louise rosnou, ao que Miih retrucou:
- Ora, você causou mais prejuízo que eu. A estufa era para todas. O laboratório só para vocês e são capazes de me endeusar só de acabar com o seu laboratoriozinho.
- SUA VADIA! - gritou Louise, sua energia aumentando de forma desproporcional.
- É só isso que sabe dizer, descabelada? Seu cabelo está pegando fogo.
- VAGABUNDA!
- Ora, ora, preciso preparar o almoço de hoje. O que preferem? Salada ou...?
- Eu quero é que você coma salamandras torradas, que tal?
- Nem morta. Tem batatas, posso fazer um macarrão com batatas, que delícia *o*
- Com certeza. E pedaços de salamandras ù.u
- Ora, vá se danar, Louise.
- Você também, Miih.
- Hmpf.
- mmmpfp ù.ú

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- É muito bom contarmos com você, Gika B. - disse Ophelia - você é uma excelente telepata, e você vir aqui foi um feito maravilhoso!
- Eu viria de qualquer jeito - Gika respondeu friamente - eu só precisei escolher entre vir por livre e espontânea vontade ou simplesmente amarrada e amordaçada.
- É uma escolha sábia. As pessoas costumam preferir a segunda opção, sabe - Ophelia sorriu - é uma tristeza.
- Com certeza - Gika mordeu o lábio inferior, apertando as suas vestes. Escolhera o tom de vinho para lhe dar uma sobriedade melhor, se pudesse tentar - com certeza. O que quer que eu faça?
- Nada de mais. Eu só quero que você leia certos pensamentos e me traga a ocorrência de qualquer pensamento contrário a mim.
- Então trabalharei muito? - Gika deu um meio-sorriso - e o que receberei em troca?
Ophelia não evitou abrir o sorriso, seus olhos brilhando vivamente.
- Você é esperta, minha querida. Um doce - fingiu pensar por meros cinco segundos e completou: - eu te dou o dobro do que você ganha, por semana. E claro, um adicional claro mostre serviço.
- Como você é tentadora, Ophelia. Mas eu quero números, não palavras.
- Okay - Ophelia disse - eu te ofereço vinte moedas de ouro a cada serviço prestado.
- Então se eu denunciar dez pessoas, você me oferece duzentas moedas - Gika percebeu.
Siih não se moveu, nem Lala mudara a sua expressão. Mas, por acaso, vinte moedas era exatamente a mesma remuneração que Siih pagara à Lala, anos antes, por hora. Era um gasto bastante alto, até mesmo para os padrões de Siih, mas Ophelia era o tipo de pessoa que adorava esbanjar.
- Esquece - Gika mordeu o lábio inferior - eu não sou tão corruptível assim. Denunciar quem pensa diferente de você? Me desculpe, mas não é o emprego dos meus sonhos.
Ophelia não desfez seu sorriso nem nada do tipo. Simplesmente apertou o dedo indicador contra a boca, como se hesitasse antes do que fosse dizer. Mas não tinha nem a sombra de dúvida no que falaria a seguir:
- Você pode preferir se corromper com esse dinheiro ou então morrer daqui a cinco minutos, ao sair do palácio.
Gika que havia dado as costas parou no mesmo instante. Estava brincando com fogo e estava terrivelmente enrascada. Queria tanto voltar ao seu trabalho de psicológa, mas...
- Ou então morrer daqui a cinco minutos...
Sim, ela tinha amor à sua vida. Mesmo que não tivesse parentes e uns poucos amigos, ainda assim gostava da sensação de respirar, de ter seus pequenos prazeres e sentir que a vida é boa.
Mas agora ela aprendera: a vida não era boa. Mesmo que isso soasse muito emo, um tanto melodramático, é a verdade. A vida é uma entidade que persiste em desgraçar com nossas vidas, se maquiando de perfeita para assim destruir a sua maquiagem e todos perceberem que na verdade a vida é horrível.

Como podemos viver, ir em frente, sorrir quando tudo vai contra nós?
Como podemos viver quando a cada dez horas, uma criança morre assassinada no Brasil?
Como Donatela pode conseguir acordar todo dia, sua vida desgraçada a cada minuto por Flora?
Gika pensava somente nisso, embora ela desconhecesse Brasil, Donatela ou Flora. Mas ela pensava na desgraça que era a vida, e tentou em dez segundos, se decidir por algo que mudaria a sua vida para sempre.

E meio que covarde, meio que corajosa, decidiu.
- Okay. Eu aceito.

Bingo. Ophelia fez mais um ponto e o jogo estava melhorando cada vez mais.

2 comentários:

. L disse...

Ah, então a Flora é a vilã?
._.

Umrae disse...

Então...
Quando é que a gente vai sair daquele buraco e mostrar para a Ophélia como é que se semeia um caos de verdade?