Siih quase vomitou e com certeza nunca mais dormiria em paz. Mas preferiu obedecer à Lala e mandar o corpo de Gika para a cozinha, como o almoço da estúpida Ravèh. Alicia ficou chocada, Lefi se escandalizou. Mas ninguém gritou com Siih. Ninguém quis dizer o quanto aquela atitude era horrenda. Todos sabiam que Siih não tinha outra saída, que estava presa pelo próprio desespero.
Em menos de meia hora, Gika foi feita de almoço.
Ninguém queria tocar naquele corpo.
Ninguém queria machucar aquele corpo.
E foi a própria Siih que teve que preparar, suas lágrimas rompendo as bochechas de culpa e dor.
Foi ela quem tirou as roupas de Gika e foi ela quem fez um corte no abdomêm, como quem faz autópsia.
Foi ela quem viu todos os órgãos internos, e tentou imaginar como preparar o prato.
Alicia quase vomitou, mas por lealdade, ajudou Siih. Ambas abriram todo o corpo, verificando que todos os órgãos estavam em seu estado normal, embora as veias estivessem esverdeadas e vários órgãos apresentassem algumas partes corroídas. Aparentemente estava tudo bem, mas o estômago, por exemplo, tinha a membrana meio que esfarelada.
- Efeitos do veneno - pronunciou Alicia.
- Você acha que isso matará o demônio? - perguntou Siih, ao que Alicia respondeu:
- Se isso acontecer, perfeito.
Alicia aguentou tudo com franqueza. Embora quisesse vomitar, não fez nenhuma cara de nojo e não chorou. Embora sentisse ódio mortal por Lala e por Ravèh, não envenenou nada. O medo de que Ophelia se vingasse de qualquer ação mal-feita era muito maior. Siih fungou quando ajeitou tudo como alguém ajeita um porco para assar.
Não se incomodou de tirar os dentes ou os ossos, ou mesmo os cabelos. Os demônios comiam tudo cru, então do que aquele em especial reclamaria? Estava assado e temperado, uma delícia para o "exigente" paladar dele!
Assou-a, temperou-a com sal, alguma erva de forte sabor.
Por um desejo íntimo de vingança, a pimenta mais forte foi utilizada.
Arrasada, Siih mandou a Gika, morta, assada e devidamente temperada, para ser devorada pelas presas de Ravèh.
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Ophelia olhava pela janela, sonhadora e um pouco feliz. Sorria, verificando que de fato os demônios adentraram em Campinas. Que feliz, logo veria que eles estavam satisfeitos, afinal a carne dali deve ser deliciosa!
Seus olhos meigos de criança miraram os três demônios, sorridentes. A quantidade a desanimou um pouco, mas nada de muito perigoso. Logo os outros viriam atrás, ela esperava.
Embora ela quisesse que não fossem somente devorados e sim que alguns sumissem, sem deixar rastros...
Era muito mais sutil, mais desesperador, mais angustiante aquela sensação de não saber para onde foi, se está bem...
Você é tão cruel, Ophelia.
Lembrou-se de sua mãe, que penteava seus cabelos todas as noites.
Ophelia, todos querem você morta.
A voz calma de sua mãe, seus olhos sorridentes.
Minha querida Ophelia, veja todo esse sangue! Não é lindo?
Seus olhos se deleitaram com o verde das Campinas sendo ameaçado por três negros vultos.
A mesa posta, era seis da tarde e o céu já estava ficando escuro.
- Mamãe, eu sei chegar até aí sem sair daqui! - gritou Ophelia, a voz excepcionalmente aguda - mamãe, eu sei!
A mãe não respondeu, tão preocupada em fazer o almoço.
Ophelia não ligou. Aumentou seus dedos como aprendera a fazer, aumentou mais e mais até seus dedos, mais parecidos com garras, alcançou as costas da mãe, esta que sentiu um arrepio, se virou e gritou:
- OPHELIA! O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?
A mãe pegou uma faca e cortou os dedos de Ophelia, fazendo a criança chorar de dor. Não era rápida para recolher as garras novas e sentia dor, dor demais ao ter as garras cortadas.
- Sua louca varrida! Podia ter me matado!
A criança lacrimejou, correndo até seu quarto e se recusando a sair para jantar. Suas mãos sentiam a dor de ter as garras cortadas.
Recolheu-se à solidão.
Mas agora não sentia mais dor.
Nada.
Ophelia sorriu, imaginando se a dor que vinha para ela era a mesma para todas as pessoas.
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- Raveneh, desça - Johnny disse - por favor.
- Quero lutar. Me deixa.
- Catherine?
Raveneh o olhou, os olhos azuis tensos de preocupação. Não lembrava Raveneh em nada.
Se Johnny podia se lembrar perfeitamente, os olhos de Raveneh jamais refletiam aquela ira guardada nem eram tão vítreos assim. Eram mais líquidos, doces, arredios. Catherine sorriu, entregando May aos braços de Johnny que nada pôde fazer. Podia até forçar Raveneh a ficar no abrigo, mas forçar Catherine? Sem chance.
Ao lado do abrigo, Johnny pediu para Rafitcha descer com Maytsuri enquanto procurava Catherine e tentava convencê-la a descer ou protegê-la, o que pudesse fazer primeiro. Rafitcha desceu, concordando em levar May. Yohana estava longe, meio que perdida, tentando decidir entre ajudar ou ficar dentro do abrigo.
- Yohana, venha para cá! - gritou Johnny - você não pode ficar aí fora, não sabe lutar!
- Mas... mas... - Yohana chorava, presa pelo desespero.
Os três demônios chegavam cada vez mais perto.
Cinco metros de altura, dois metros e meio de largura.
Os braços, desajeitados, pareciam ser de pedra e as pernas podiam se fazer escutar por toda a região.
Chifres desajeitados de cinquenta centímetros, pontiagudos que podiam perfeitamente matar um bebê caso um deles caísse ali, como uma flecha.
E a língua... língua de vinte metros, repleta de espinhos.
- Para trás! - Umrae gritou, largando a cesta de tomates no chão.
Uma moça muito nervosa teve o cuidado de recolher a cesta de tomates e sair correndo para o abrigo, em alvoroço.
Doceh andou cinco passos para trás, medindo a distância que tomaria para conseguir atingir um deles com seus poderosos dardos de mel. Mas no quinto passo, tropeçou em Yohana, que se ajoelhara sem conseguir tomar qualquer atitude.
- Idiota! - gritou Doceh - vá para o abrigo!
- Hmmm... - a voz era grasnante e baixa - carne adocicada de medo... ADOOOORO.
Era um dos três demônios. Abriu a boca com ferocidade, jogando a língua contra Yohana. E pelo que Doceh percebeu, a língua era a sua espada e a manejava tão habilmente que dificilmente seria derrotado com alguém de pouco nível. Doceh foi jogada para trás só por um soco que o demônio deu na terra, fazendo todos que estivessem a menos de 50 metros dele caírem no chão. Ou seja, praticamente todo mundo a não ser aqueles que estivessem muito perto do abrigo como Rafitcha que voltara para ajudar todos aqueles que recolhiam as cestas das colheitas para não perderem muita coisa.
E mesmo ela parou, horrorizada. Seus dedos deixaram cair a cesta de maçãs pela escadaria, fazendo com que Vinicius tropeçasse em um monte de maçãs e também derrubasse a cesta em que continha olivas, sendo ajudado por uma atrapalhada Amai.
- Você...
Yohana conseguiu se levantar, debilmente, seu corpo já molhado de suor.
Foi tudo muito rápido.
Foi tudo em um piscar de olhos.
Em um segundo, se via a Yohana e o demônio separados por meros... dezessete metros?
No outro, os dois estavam unidos. O demônio não movera um passo, ninguém conseguiu se levantar com os freqüentes socos que os outros dois demônios davam na terra. E Yohana estava presa ao ser, a língua enrolada nela como uma serpente se enrola em uma árvore.
Os espinhos a feriam, fazendo buracos em seu corpo.
E ela continuava paralisada, sem gritar nem chorar. Somente seus lábios entreabertos e sua expressão chocada.
- Yohana! - gritou Fer, enquanto Umrae tentava calcular as fraquezas.
Corpo feito pedra... quanto mais pedra é, mais frágil os pontos fracos...
Empunhou a cimitarra em seu cinto. Dessa vez ela não iria errar, ou iria?
Ly, Fer, Doceh. Poderão me dar perfeita cobertura...
Enquanto isso, Yohana agonizava. Agora fechara os olhos, tentando lembrar de alguma oração, perdida entre os escombros de Ophelia.
A língua se apertou.
O estômago foi atingido, rasgado ao meio.
A agonia de o espinho não atingir as costas de uma vez era simplesmente sufocante. Aqueles espinhos que cortavam a sua pele, atravessavam todas as camadas da pele e feriam os órgãos, arranhando-os, rasgando-os. Mas não iam mais além.
Que agonia, pois Yohana queria logo a maior das dores para ter o maior dos alívios!
E por puro sadismo, o demônio fez questão de fazer com nem os pulmões nem o coração fossem sufocados, somente todos os outros órgãos. Para, pouco a pouco, o sangue se esvair de dentro para fora, causando em uma hemorragia, e Yohana sofrer, devagar, a falência de múltiplos órgãos. Um grito de dor ao sentir a aguda pontada no útero.
- Agora! - foi tudo o que Umrae gritou, e logo todos os outros puderam compreender.
Os dois demônios não se preocuparam com as potenciais vítimas. Se divertiam ao verem Yohana ser rasgada por dentro, e riam, dando socos no chão a todo momento.
Umrae resolveu aguardar o próximo soco, que veio em menos de um minuto, para dar um salto para a frente. Alcançou o terceiro demônio com rapidez e precisão, praticamente aterrisando muito próximo aos pés dele, também de pedra como verificou mais tarde.
- Ly, venha! - gritou Umrae - Fer, cubra Doceh!
Se eu tivesse Kibii aqui... seria tão, tão fácil e idiota...
O coração doeu ao lembrar de Kibii, praticamente a companheira que cobria toda brecha que ela podia deixar e vice-versa. Bem, não cometeria erros e Yohana sairia viva, e os demônios sairiam mortos, certo?
Doceh resolveu aproveitar que o primeiro demônio se entretinha na Yohana, e assim mirou em sua cabeça de forma cuidadosa. Seus dardos de mel eram bem conhecidos, pontudos e maldosamente venenosos. Por puro azar, não havia trago os brigadeiros corrosivos nem o pavê tão mortal, mas não havia problema. Fer cumpriria essa falha com talento.
Mirou o primeiro dardo, e foi fácil demais. Estava parado, degustando o sabor de Yohana com seus espinhos linguais.
O segundo, o terceiro, o quarto foram.
Devia estar sob o efeito, mas parece que ele sequer sentiu...
- Fer, vá de qualquer jeito quando eu lançar o sexto, ouviu? - sussurrou Doceh, ainda tendo a ignorância dos outros dois demônios.
- Ouvi - Fer ficou bem atrás, escondida atrás de uma das pernas.
Droga, ele é alto demais para eu dar mais um salto... e com esses socos idiotas, como vou conseguir ficar em pé?
Mas Doceh conseguia e lançou mais dois dardos de mel, ao que o demônio resmungou alguma coisa.
- Meeerda - grasnou - essas coisas malditas que estão jogando na minha cabeça!
E deu um soco, tão forte que foi a sorte de Fer.
Imaginar uma garota alcançar o ombro de alguém com um mero impulso é uma idéia idiota e ridícula, mas foi exatamente o que aconteceu. Ela era ágil e pequena, de um corpo de adolescente, e de forma tão hábil alcançou os ombros do demônio com facilidade.
Punhal Número Um.
Punhal Número Dois.
- Órfã tola...
Ajeitou os dois punhais diante da cabeça do demônio.
- Matem-na! Ela não é de nada!
E enfiou-os na cabeça. Enfiou-os como se estivesse matando os assassinos de Luck e Joe.
Com sabor de vingança.
A língua parou de se mexer, se desenrolando pouco a pouco.
Yohana gritou de dor. Por incrível que pareça, ela ainda sobrevivia.
- Alguém - gritou Umrae que se adiantou para o segundo demônio com ferocidade - cuide de Yohana!
Rafitcha se levantou, sendo seguida por Tatiih e Kitsune. As três sequer tomaram coragem, sequer pensaram no que faziam, se arriscando em um campo de batalhas. Somente correram até Yohana caída, o demônio caído, abaixando-se a cada vez que o terceiro demônio se enfurecia e corria todo o campo com a sua língua. Era evidente que a língua dele era a maior: Ly calculou vinte e cinco metros.
O segundo demônio se ocupou com Umrae que se aproveitou de um dos socos para dar o impulso, como Fer fizera. De forma feroz, cortou a cabeça com a cimitarra, em um corte transversal que rompeu a cartilagem nasal e os lábios, e ambos os olhos foram separados pelo corte.
- Parabéns! - gritou Fer, entusiasmada - estamos indo bem!
Todos se voltaram para o terceiro demônio, sozinho, enfrentando quatro oponentes, os únicos que preferiram enfrentá-los. Nenhum soldado de Campinas, que lutava nas guerras, se dispôs a enfrentar demônios.
A Capitã Bi, não se podia culpá-la, estava dando uma limpada no navio dela e se manteve alheia à confusão.
Bia estava ferida, isolada no abrigo.
Kibii estava mantida em cativeiro, sendo ferida todos os dias.
Foi complicado, diria Rafitcha dias adiante.
Foi horrível, completaria Tatiih e Kitsune acrescentaria:
- Doloroso demais.
A língua, espinhosa, foi fatiada com grande dificuldade para não rasgar Yohana completamente.
- Yohana, fique acordada! - gritou Rafitcha - não durma!
Tinha medo de que Yohana ficasse insconsciente, e assim morresse, para a dor diminuir. Kitsune pegara uma faca de um pequeno estojo que pegara de qualquer jeito em cima da mesa (se Fer visse qual faca ela estava usando, daria um ataque) e disse:
- Pegue aqui - mostrou o estojo que ainda continha três facas - melhor cortarmos a parte com espinho do que desenrolar tudo de uma vez.
E dá-lhe trabalho duro: as três tiveram que trabalhar cortando espinho por espinho, e de forma apressada, enquanto o terceiro demônio se ocupava de quatro oponentes.
O demônio se avançou, não dando soco nenhum na terra.
Caminhava para as plantações.
- Maldito! - gritou Umrae - detenham-no! Não pode acabar com o que nos resta!
Bem que tentaram.
Mas o demônio prosseguiu, ignorando todo tipo de golpe com sua carcaça de pedra. Moveu a língua em cima da plantação, e simplesmente rasgou todos os pés de milho que havia.
Deu mais um passo, e com as mãos, destruiu a de tomates.
Ly mordeu o lábio inferior.
- Umrae.
- Quê?
- Precisamos de uma isca - olhou para Umrae preocupado, e depois olhou para Yohana.
Uma isca...
Que pensamento cruel.
- Eu vou lá, então - Fer sussurrou.
E foi em frente.
3 comentários:
Não! Deixa que eu vou, eu já deveria ter ido no lugar da Kibii, agora você quer colocar a Fer em risco? Deixa que depois eu me viro e escapo, mas não quero mais ver meus amigos se sacrificando.
OBS1: Que coisa horrível você fez com a Gika o_O !
OBS2: Qual a possibilidade dos meus fornecedores de Faerün arranjarem armas de aço-frio (material mágico)e a gente começar a equilibrar um pouco as coisas?
Bjos
Não esperava que você realmente mandasse a Gika pra mesa o.O
de qualquer forma, adorei o capítulo!
foi uma luta espetacular!! absolutamente perfeito!
e Luna... eu vou aparecer novamente?
Eu quero ver o verde manchado de vermelho! Que pena que não estou lá para lutar também, mas gostei bastante de ter sido presa e deixar a Ophelia com ódio mortal de mim.
*comentário de caps anteriores*
Sorrir em momento que deveria estar em desespero é bem a minha cara mesmo XD só quero ver o que aquela Ophelia vai fazer comigo.É melhor escrever os outros capítulos logo, Tsuki-chan.
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