sábado, 24 de outubro de 2009

Parte 93 - Constatações.

Ophelia estava deitada na cama real, sendo cuidada pelos criados Glombs, medrosos e revoltados, com uma rainha tão exigente, desorganizada e louca. Sua respiração era difícil, como se buscasse por mais e mais ar. E tremia, várias vezes, deixando Lala preocupada. Pela primeira vez tivera realmente Ophelia nas mãos, sob seu poder.
"Mate-na!" gritara Alicia quando percebeu o estado de Ophelia, o quão frágil estava naquele momento.
E Lala se recusou. Era o certo a fazer, sabia disso, mas passar tanto tempo auxiliando uma pessoa e depois a matar era simplesmente traição, e Lala abominava traições. Ela, e toda sua família de guerreiros por gerações passadas. Se ela chegasse em casa e contasse quantas pessoas ajudou a matar seria terrível para sua família. Porém se chegasse em casa e contasse que traiu seu senhor ou um amigo, iria ser deserdada e humilhada só por isso. Ophelia podia ser uma senhora geniosa e terrível, de ares tresloucados, mas ainda era sua senhora e sua amiga, e contava com Lala para se manter sã. Se Lala abandonasse isso, seria traidora.
Alicia gemia de ódio, e se recusou a cuidar de Ophelia.
- Que os Glombs cuidem disso! - ela havia gritado - ela matou minha rainha, ela matou o consorte da rainha! Ela matou tudo que eu amava!
Lala se perguntou se Alicia, por acaso, tivera sua família assassinada por Ophelia, mas imaginou que provavelmente tudo o que Alicia era amava era zelo ao poder e organização, e de fato, Ophelia acabara com isso, deturpando tudo o que havia de organizado, límpido, racional naquele estranho mundo feito de nuvens e ventos.

Agora Lala se certificara de vigiar Ophelia vinte e quatro horas por dia, e até montara uma cama ao lado da de Ophelia, para que ninguém se atrevesse a matar Ophelia durante o repouso. Assim como Alicia tivera sua rainha e era leal até a morte, Lala também tinha a sua rainha e também era leal. Eram somente rainhas diferentes, e rivais. Mas uma perecera, e restara sua serva, ficando em desvantagem.
- Ah, Ophelia, Ophelia!
Ainda doía pelo corpo, foi quase um sacrifício trazer Ophelia de volta para o palácio: tivera que usar uma boa dose de encantos infantis que nunca usara direito para se mover com facilidade, e ajudou muito o fato de Ophelia ter permanecido consciente durante o caminho. Lala teve a impressão de que o caminho se facilitava ao redor delas.
Mas no palácio ansiava por descanso, chegara a admitir isso.
E agora, em pleno almoço, ela dormia a sono solto, enquanto Lala ficava acordada, ansiosa. Tinha pensado nos supostos planos de estratégia que Ophelia teria. Seria algo muito perverso? Simples? E não parava de pensar em como poderia vencer Campinas. Ao mesmo tempo não queria que a rainha vencesse, odiaria a idéia de ver um mundo em que não houvesse ninguém se opondo a Ophelia. Era leal, sim. Mas isso não significava que tinha que gostar do caos, destruição e tanto desleixo, só pelo poder. Se não fosse a Lala, aquele palácio tinha virado um pandemônio maior do que já era, e nem haveria criados para cuidar de Ophelia.
Ela depende tanto de mim, Lala encarou a rainha com curiosidade, e mesmo assim poderia facilmente acabar comigo, largar de mim... ela não é criatura a se viver aqui, numa cidade, e sim nas florestas como as antigas fadas faziam...
Desde que as fadas deixaram de ser criaturas de campo, o mundo mudara tanto! As cidades eram como artifícios que as fadas usavam para viverem como humanos, e os campos e árvores eram como coisas estranhas e belas, que deviam ser mantidas porque eram o lar dos ancestrais. Decerto, pensou Lala, as Musas e Ophelia nasceram nessa época, quando as fadas ainda eram seres que conheciam bem a natureza, porque eram parte dela. Elas não entendiam o poder 'civilizado', as construções, tanto gosto por organizar tudo em A, B e C.
Ophelia era exemplo vivo disso.

Eram as últimas remanescentes, e depois delas, não havia mais uma única fada com poder comparável ao delas.
Seria o fim? imaginou da soberania das fadas sobre essa região?
E os olhos oscilaram de cansaço e sono, mas manteve-se acordada.

Sua senhora dormia, e ainda estava fraca, talvez, pra se defender sozinha.
Ela tinha que ser guardada como uma jóia. Não fazia mais que sua obrigação.

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E o dia se arrastava preguiçosamente.
Agora que ninguém mais estava realmente ansioso por coisa alguma, e agora que tantos demônios tinham sido mortos e Heppaceneoh estava praticamente tóxica para qualquer vida, a vida chegava a ser um pouco mais feliz. E mesmo quando Rafitcha usava de sua língua ferina, ela fazia com um pouco mais de humor (mínimo, a dor nos pés não lhe permitia ser suficientemente bem-humorada) e as pessoas terem mudado o tratamento em relação ao sarcasmo da amiga ajudou: elas recebiam todas as ironias, agora, com outras ironias em resposta e um sorriso no rosto. E tudo ficava bem.

E veio o dia, tardezinha, noitinha, noite. Quase madrugada.
Raveneh dava de mamar à May, a que chamava de "sol do meu dia" carinhosamente, e Johnny gostava de passar algum tempo com ambas, esposa e filha. Ele ficava contando histórias para a criança, falando sobre dragões bons e princesas resgatadas. Raveneh estava com medo de dormir: cada vez mais, quando dormia, tinha pesadelos. Alguns tinham sangue no meio, e gritos. Mas a grande maioria era como se ela sentisse dor, crescente e aguda, alojada em alguma parte do corpo. Ou então era como se afogar tranquilamente, e de repente, perceber que estava morrendo e começar a se debater, e dessa vez realmente morrer...
E sempre, sempre terminava com a voz: você poderia ajudar Umrae e os outros se me deixasse entrar...
Não. Não. Não.
Geralmente a noite terminava com uma Raveneh chorosa nos braços do marido, que a aconselhava a relaxar. Catherine não iria agir, enquanto Raveneh não permitisse. E ela nunca iria permitir, certo?
Mas é tão tentador... dizia Raveneh para si mesma, tão tentador simplesmente se entregar a essa outra pessoa e esquecer de tudo. Das dores, do sofrimento, das perdas e derrotas. E essa outra pessoa tem poder para que possa se aliar ao exército de Umrae... mas ter outra pessoa dentro de si na qual não tinha o mínimo controle era apavorante.

Tinha medo todos os dias.

Fer descansava na rocha, conversando com Ratta. Seu ar de mocidade aliado com sua técnica assassina fazia com que Ratta lhe fizesse perguntas, assim como recebia questionações sobre o cabelo laranja ("é realmente natural?"), orelhas de gato ("você é realmente humana?") e o rabo de gato ("meldelz, nunca vi uma pessoa assim!"). Ratta tinha bom humor, o que agradava Fer: às vezes ela tinha impressão de que ninguém em Campinas tinha muita paciência com uma garota de dezesseis anos. Umrae era bem-humorada, mas também era muito séria, e sua face de mulher sábia e tranquila, e também muito decidida, fazia com que Fer nunca realmente tirasse as dúvidas com ela... Umrae lhe parecia uma professora que pode ser muito legal, mas por via das dúvidas, melhor não se aproximar. Maria era a mesma história. Rafitcha tinha eterna paciência com a Fer, mas ela ultimamente vivia estressada, e Fer não podia culpá-la: cuidar da casa pode ser muito mais estressante do que se jogar na guerra. Kibii também chegava a ser doce com ela, quando lhe ensinava o melhor modo de aprimorar suas técnicas, porém ela também vivia pensando nos seus problemas, e não chegava a contar sobre eles.

De qualquer forma, Fer se sentia meio criança entre tantas mulheres adultas, maduras e responsáveis. Raveneh era a que mais pensava como criança ali, mas era só parte de sua personalidade doce, amável e educada. Raveneh nunca conseguiria passar superioridade a alguém, de tão simples que era. E Amai não valia: a menina só vivia nos livros, e com a pouca idade que tinha, mais parecia ser ansiosa demais para crescer, virar mulher de uma vez.

Ratta podia ser mais velha que Fer, mas tinha aquela dose juvenil e descontraída. E muitas conversas.
- Quanto tempo demora para treinar um dragão?
Ratta pensou um pouco antes de responder.
- Um dragão, dragão tipo Erevan ou Keishara é imortal, então pode levar o tempo que quiser. Não sei bem, eles nunca me contaram como é o treinamento. Mas um dragão mestiço vive por cerca de, hm... duzentos... não, trezentos anos. Acho que três séculos é uma idade em que muitos mestiços morrem. E treinamento, bem... acho que uns setenta, oitenta anos.
- Muito tempo - Fer se surpreendeu.
- Nem tanto - Ratta disse com um sorriso dócil - três séculos não são nada para Gerogie. Eles vivem pouco. Nós é que vivemos muito, muito pouco. Um humano mal chega a cem anos, com alguma sorte!
- Aqui - disse Fer - os humanos morrem com 150 anos... mais ou menos por aí.
- Sério? - Ratta que pareceu se surpreender - então as Campinas enfeitiçam até mesmo os mortais comuns por aqui. Vivem tanto como as fadas, então.
- Sim - Fer olhou para o céu. Estava azul, com o sol reluzente. Porém com um véu sobre tudo, como sombras mais pronunciadas, mais escuras e mais longas a se arrastarem sobre Campinas - como Raveneh. Ela é uma fada.
- Interessante... ela não me parece uma fada, mas conheço pouco - Ratta sorriu - mas entendo. Eu não pareço ser realmente um ser humano, normal.
- Um ser humano com cauda de gato não é normal - Fer atalhou, e Ratta concordou, rindo.
As duas conversavam sobre amenidades do dia-a-dia, famílias e coisas profundas, como pensamentos em relação a guerra, amor, medo e morte. Fer chegou a contar algo sobre seu passado, meio acuada. Ela nunca contava nada sobre si própria pra ninguém. Desde que teve o seu pai de criação assassinado, desde que ela virara uma assassina, nunca, nunca realmente falara sobre a vida dela pré-Campinas.
- Como chegou aqui? - era a pergunta de Ratta.
- Estradas - foi a resposta quase fria. Era visível que Fer lembrara de algo não muito feliz - meus pais morreram, e... bem, eu caí no mundo.
- E o que você é?
- Assassina.
Tão frio, tão inumano, tão cruel!
E ainda assim havia tanta doçura naquela palavra, e mesmo quando Fer matava pessoas, ela já o fazia com piedade e sofrimento. Ela crescia, suas certezas eram testadas e sua amargura infantil passava com os anos. Dois anos atrás não hesitaria em matar alguém se este o incomodasse minimamente. Agora? Agora sentia que ainda era cedo demais para levar toda essa vida realmente a sério.
Isso era crescer?

Doía, então.

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- Basta - disse Loveh, de repente.
As folhas se agitaram, e Alice se abaixou cuidadosamente, sem fazer um mínimo de barulho.
- Escondam-se - Loveh sussurrou, sua voz tão baixa que mal conseguiam escutar - façam todo o possível para que ninguém possa nos perceber, nem a nós, nem a nossa magia.
Miih se abaixou também, assim como Alice, e todas as outras fizeram o mesmo: se esconderam nas sombras, seja no chão ou nas copas das árvores, e não poderiam serem vistas por alguém. Reteram toda a corrente mágica o máximo possível, para que nenhum ser mágico pudesse detectá-las por ali. Era trabalhoso, e até cansativo, porém dava certo. Especialmente quando Alice ajudava os outros, escondendo todos da visão alheia.
- O que houve? - cochichou Sunny interrogativa, e foi respondida por Louise:
- Algum ser por aqui. Provavelmente um demônio.
Miih sentiu-se incomodada.
- Não importa a força dos demônios - disse, com aspereza - nós poderemos matá-las, e só precisa de uma de nós.
- Sim, mas - Sunny falou docemente - não queremos denunciar nossa posição para Ophelia... matar um demônio é assinalar que estamos perto... e não podemos deixar Ophelia desconfiar que a gente veio pra cá, para que possamos destrui-la.
- Concordo - Miih pareceu ressentida por um momento e murmurou - isso é tão cansativo...
Todas concordaram em silêncio.

Há muitos, muitos anos elas eram adoradas. Ainda eram, mas já não tem mais tanta reverência como antes. Eram tidas como deusas, entidades da natureza que abençoam e amaldiçoam campos, conforme os desejos. Viviam nos campos, sendo rainhas das florestas e recebiam tantas orações, tantos pedidos! Mesmo Louise, que nunca tivera muita paciência com humanos, sentia falta de escutar o constante murmúrio implorando por um benção sua, por uma atenção, por mínima que seja.
Agora... agora tudo morria. As Musas eram como uma lenda, e de fato assumiam essa posição: distantes, afastadas. E uma vez se perderiam em uma esfera longe dos humanos. Era como Miih e Loveh viviam... longe de tudo, sabendo das novidades somente porque sabiam. E dessa vez só voltaram ao contato com fadas e humanos por causa de Ophelia. Se ela nunca tivesse voltado... elas nunca teriam se aproximado de novo. Essa união era estranha, nunca acontecida realmente desde que Olga morrera.
Falar de Olga ainda doía.

irc!
Uma cobra passara tão veloz como um raio.
Alice recuou, sentindo o cheiro de algo estranho. Que droga, sentira algo! O que seria? Um demônio? Vulgar demais para conseguir senti-las também, elas estavam tão bem disfarçadas! Era como uma magia suave, que transcorria por todas aquelas flores e galhos e ramos, e pingava como orvalho no amanhecer. Era estranho, e era estranhamente familiar.
Não era um demônio, não tinha pessoas ali perto.
Alicia se levantou, já entendendo. Se chocava mais e mais a cada vez que entendia.
- Não - ela quase chorou, mas tinha que ser forte - não.
- O que houve? - perguntou Sunny, assustada.
Alice prendeu o choro, e só indagou:
- Sente?
Todas perceberam.

Aquela estranha magia que ela confundira com a de um demônio era de um demônio. Porém sua anatomia, sua criação e seu surgimento foram de uma fada. Era Ophelia. E toda aquela familiaridade era só porque Ophelia agira como um leão: devorara toda a essência de Elyon, difundindo a magia dela com a sua própria, lançando os feitiços para os quatro cantos e estes se arrastavam por léguas e léguas.
Até mesmo ali, ainda meio longe da capital, sentia os efeitos de uma Ophelia enfraquecida, porém ainda poderosa demais.

O que seria delas, ali, nos domínios que Ophelia demarcara como dela, assim como um cachorro urina para dizer que tal área era a sua?

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Enquanto todos estavam tão excitados, apreensivos, assustados e aliviados com a vinda dos guerreiros, a ida deles para Heppaceneoh, e a volta deles, alguns feridos, uma pessoa não ligava para isso, tamanha era sua raiva e amargura.
Zidaly cuidava das coisas pormenores como as vestes dos guerreiros, zelar pelo bom estado das camas de todo mundo e todas essas coisas pequenas e essenciais. Achava verdadeiramente humilhante que ela, uma guerreira, de posto quase tão alto como o de Crazy, tivesse que submeter a uma criatura revoltante como a Bel, que insistia em vingar-se de cada maldade de forma inteiramente pessoal. Tudo bem, ela tinha feito a cabeça do rei para que fosse na missão! Ok, ela fizera por merecer! Mas isso não justificava toda essa... maldade. Fez uma nota mental de nunca mais ofender Bel. Se ela se vingasse assim cada vez que Zidaly a ferisse, Zidaly não teria mais vida para si própria.

Estava morta de sono desde que os guerreiros voltaram de Heppaceneoh, tendo que cuidar de tudo sob a rígida supervisão de Bel, que adorava lembrar o quão humilhante estava sendo aquela missão para Zidaly.
- Sente falta do colo do rei? - Bel disse, em certo momento naquele dia - você só pediu pra vir junto, mas se esqueceu de especificar as condições! Agora, aguente, sua vagabunda!
Crazy nada via disso. Ele vivia pra lá e pra cá cuidando dos dragões, pensando em estratégias e conversando com o pessoal das Campinas para descobrir tudo sobre o território que possível, de modo que ele mal pensava em Zidaly. Nos poucos minutos que se dava ao trabalho de fazer isso, sempre imaginava que a ex-namorada estaria bem e, no fim das contas, se ela reclamava, então reclamava pra nada. Ela que fez com que o rei obrigasse todos a aceitá-la no grupo, ela quem quis vir pra cá. Agora, aguenta!

Ninguém das Campinas falava com Zidaly: ela mesma se afastava, sem querer se apresentar, e mesmo os outros percebiam como ela era ignorada e deixada de lado, de modo que faziam o mesmo. Sempre ali, escondendo seu corpo esbelto com roupas feias, amargurava a vingança irada de Bel. E em segredo tecia uma resposta.

Era atraente e manipulativa, com seus cabelos negros e voz sensual. Sua vingança não seria somente com Bel, mas também com Crazy e todos que permitiram o desprezo para com ela, todos pagariam! Ratta, pois apoiava Bel em seu ódio, Polly porque apoiava Ratta. Harumi, Toronto, Giovanna, Pauline, Ti-Yi, todos eles, malditos sejam! sempre tão superiores por serem soldados, sempre se achando os maiorais porque sobreviveram a Heppaceneoh. Eu sou vice-comandante, a segunda no comando! pensou, porém somente em assuntos como aquela cidadezinha estranha, da Terra Seca... aqui sou a escrava de Bel. E ela tinha certeza que todos saboreavam essa escravidão, abusando dos serviços. Já não bastava ouvir aquela enjoada Pauline, de voz melosa, lhe 'pedindo' pra limpar as pedras. Claro que o pedido foi pura sacanagem, mas era a primeira vez que Pauline podia dizer tudo o que pensava de Zidaly sem ser ameaçada de demissão ou cadeia.
- Como está se sentindo, Zidaly? - Pauline lhe perguntou uma vez - anda se deitando com algum homem, ou resolveu ficar em abstinência pra ver se consegue o Cra--
Foi por muito pouco que Pauline ficou inteira; pois Zidaly quase lhe metera a faca que usava para afiar na pedra - um dos objetos usados no trato com dragões. A sorte foi ter uma doce Harumi que impediu que o sangue fosse derramado.
Agora, decidia Zidaly furiosamente, Pauline pagará pela língua maldita, Harumi me pagará por ter me impedido de matar aquela vaca! E todos, todos irão pagar pelo que fazem comigo...
Perguntou-se sobre os dragões. Iria se vingar deles também?
Não... não tenho poder para isso, deixe-os em paz. Erevan, Keishara, Gerogie... não, eles testemunharão e contarão ao rei o que eu fiz... e eu não me preocuparei mais, pois não voltarei mais a Grillindor.
Era uma decisão estranha.

Era como matar.
Era como morrer.
Era como simplesmente decidir reter a vida que escorrega entre seus dedos.

Seu primeiro passo, decidiu, seria usar roupas mais comportadas ou atrairia a desconfiança das mulheres das Campinas. Seriam elas, pensou, as armas para sua vingança.

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- !
Ophelia? Ela já se recuperara?
Lala roía as unhas, esperando, esperando, esperando...
- La-
- Ophelia! - Lala exclamou quase explodindo de entusiasmo infantil. Conseguira, conseguira que sua rainha não morresse, conseguiu garantir sua vida, conseguira, conseguira... e ali estava a garota de tantos anos em um corpo juvenil sorrindo para ela tontamente, como uma criança.
- Lala - disse Ophelia. Sentia dor de cabeça, dor que latejava nas têmporas - Lala...
- Não fale, Ophelia - Lala disse prontamente, já se levantando para arrumar o jantar real, a comida, o banho, as roupas, tudo...
- Não vá - Ophelia resmungou, parecendo ser uma criança aborrecida dessa vez - não vá.
Lala sentou-se, então, na beirada da cama.
- Tudo bem... fico aqui com você.
Ophelia sorriu docemente. Não era nem a sombra da cruel e louca rainha que era.
Seus olhos castanhos se dirigiram ao corpo endurecido de Lala, que se mantinha rígida e com a coluna firmemente ereta, por mais que doesse. Pelos seus dedos trêmulos, percebera o quanto custava à amiga buscá-las por aquela região e trazê-la, e ainda mais cuidar dela para que ninguém machucasse uma rainha fraca. Reconhecido o esforço, ela não recusaria, nem seria ingrata.

Houve um tempo, refletiu suavemente, que daria a vida pela sua família. Por sua mãe morta, por sua irmã desaparecida. Se entregaria de corpo e alma por qualquer uma delas, porém não foi o que fez: resolveu vingá-las. Mas agora... mesmo a vingança era incerta demais, insegura demais, algo que só corroía mais e mais. Lala, agora, era seu porto seguro. Se tornara sua escrava por uma dívida de luta, e aos poucos... era como uma amiga, seu amparo nas suas loucuras.
Por quanto tempo perduraria toda essa busca pelo poder?
Nunca, nunca era o suficiente. Queria devorar as cidades das fadas, as Campinas, os reinos independentes, as ex-colônias, os montes nortistas, se fosse possível engolir tudo com seu poder até Faërun. Sentia que era errado, que era impossível...
Mas como não fazê-lo? Ela tinha os poderes. E não tinha escrúpulos.
- Lala - Ophelia disse - Lala... o que você acha de mim?
Lala arregalou os olhos de espanto, e quase um riso de zombaria se fez dos seus lábios. Ophelia, Ophelia perguntava algo de forma tão doce, tão infantil, tão mendiga para sua escrava? Que mundo era esse?
- Eu... - Lala tentou responder - eu não sei. Você... - sentiu que, pela primeira vez, sua sinceridade seria respeitada de forma integral - eu a acho louca, entende. Você é louca, Ophelia. Perdoe-me...
- Tudo bem - Ophelia sussurrou - tudo bem. Venha cá.
A rainha abriu os braços, indicando para que Lala se aproximasse. A escrava o fez, e colocou a cabeça sobre o colo de Ophelia, como se fossem mãe e filha. A rainha, enlouquecida, abraçando sua serva mais leal, de cabelos laranja e ar de guerreira impenetrável.
- Vai ficar tudo bem - Ophelia tentou confortar.
Lala nada disse. Ainda estava meio chocada demais com tudo isso.
- Lala - Ophelia continuou - você gosta de mim?
- Sou sua serva, Majestade - declarou Lala respeitosamente.
- Não, não quis dizer isso. Eu quero saber se você gosta de mim - e moveu Lala de forma que pudesse fitá-las nos olhos. Isso fez com que o coração de Lala, em choque, se derretesse como manteiga.
Lala assentiu, sentindo-se humilhada.
- Pois bem, confio em você - o sorriso da rainha foi tão dócil! - olhe-me - e Lala encarou a rainha nos olhos - não é mais minha escrava. Alforrio-te. É livre. Pode ir pra onde bem quiser, e não irei te perseguir. Vá.

Droga.
O último argumento que Lala tinha em permanecer junto com Ophelia se fora. Como poeira.

E começou a chorar.
- Não - Lala dizia, chocada consigo mesma, com as lágrimas, com a surpresa de constatar que não saberia viver longe, preocupada com a amiga, perguntando-se sobre ela constantemente - não, não, não...
- Não precisa ir - a rainha disse calmamente - só tem essa escolha, agora... agora é minha amiga, e te nomeio meu braço-direito... mas você pode recusar, se quiser...
- Você está louca - Lala gritou, quase odiando - você está louca! Diz que vai me alforriar, diz que... droga, Ophelia, volte a dormir. Quando acordar, isso tudo será um sonho perturbador.
Ophelia riu.

Ela até voltou a dormir.
Mas já não era mais sonho... o que quer que Lala fizesse, ali em diante, era tudo exclusivamente porque ela escolheu. Ela jamais poderia continuar a justificar as coisas com a escravidão, já que as correntes... Ophelia as retirou, de livre e espontânea vontade.

Mal podia acreditar.



Argh, quando não é minha falta de tempo, é meu desânimo. E quando eu melhoro e tenho tempo, A INTERNET CAI. Essa lei de Murphy, viu, ela age direitinho...
Enfim, eu gostei desse capítulo. Sério. Falei mais da relação entre Lala & Ophelia, de Raveneh -adoro escrever sobre ela- e Fer, e voltei com Zidaly que será importante para a trama (no âmbito social, não no 'guerreiro') e estava ficando de lado. Espero ter deixado a trama no ponto que desejo, para que eu possa desenvolver os enredos e tal, enfim, vocês entenderam :D

Umrae, poder é um amante volúvel? Uau, nunca pensei dessa forma, e é verdade. Ophelia realmente vê no poder algo que lhe dá vida, como se fosse um amante, e uma hora ela pagará por isso. Obrigada por essa pesquisa que fará pra mim, não sabe como me ajuda! (sem contar que esses dados sobre elfos serão de importância maior ainda na terceira temporada, por conta da trama que eu já tenho na cabeça).

Ratinha, a minha intenção foi essa, uahsuahsa xD Ophelia sempre acha que vence, né? Aloka ^^'
Beijos, gurias, e 1) Sim, se eu for a SP, avisarei! 2) Curitiba? Acho impossível passar por lá, por conta do tempo + dinheiro, mas assim que puder, eu vou \o/

4 comentários:

- L disse...

Ae, Zidaly voltou. *-*'
Agora basta saber até que ponto ela irá por vingança! o.ó
E adorei isto de vc explorar a relação Lala x Ophelia, embora NUNCA imaginasse que Ophelia iria libertar Lala. :o
Capítulo MUITO bom, gostei bastante. Parabéns, Lunoska! :D
;***

Umrae disse...

Primeiro as moonblades...
Os elfos (mesmo as sub-raças más, como os drows do subterrâneo) tradicionalmente são governados por um conselho de nobres (normalmente 8).
Houve uma época na história élfica em que os Deuses decidiram que essa forma de governo seria ineficiente para que a raça conseguisse atravessar as crises e sobreviver ( considerando-se que o conselho nunca concordava em nada nem chegava à conclusão nenhuma). Nessa época, Corellon Larethien, supremo deus dos elfos, decidiu que os elfos deveriam ter um rei, alguém com fortes princípios morais, coragem e inteligência para conduzir o povo.
Com isso, os deuses transmitiram a mensagem aos clérigos, e começaram-se a forjar as moonblades, que, durante sua confecção, receberam magia diretamente dos deuses. Cada moonblade é uma espada longa com uma moonstone encrustada no punho. Essa pedra guarda a maior parte da magia da espada.
As espadas seriam as responsáveis por julgar o caráter e a capacidade das linhagens das diversas famílias e escolher as mais aptas, até que a que restasse com mais moonblades ativas seria a de onde viria o rei.
Corellon Larethien, ao perceber também que os tempos estavam mudando e que os elfos teriam que aprender a aceitar as outras raças e conviver pacificamente com elas, determinou que somente estariam qualificados a portar uma moonblade os elfos da sub-raça de prata (também conhecidos como elfos da lua), que eram mais tolerantes e pacíficos que os demais. Isso obviamente causou a revolta dos elfos de ouro, a até então considerada a mais nobre das raças, que descendia dos primeiros governantes de direito entre os elfos. Centenas morreram porque teimaram em tentar tocar uma moonblade para provarem que eram dignos.
Só que tem os detalhes... Sabe como a espada mostra que alguém é apto ou não? Caso não seja, ela fulmina o elfo imediatamente. A menos que ele seja o último daquela linhagem, nesse caso, em vez de matá-lo, a espada cai dormente e perde todo seu poder.
Detalhe número dois: pensa que se o sujeito passou no teste está tudo bem? Não... Cada dono de uma moonblade acrescenta a ela uma runa, que contém uma magia (essa magia é determinada conforme a personalidade do dono e uma situação de grande necessidade, ele não escolhe exatamente qual vai ser nem o momento em que a runa é gravada). Quando isso ocorre, o portador "prende" sua alma à moonblade. Isso quer dizer que quando ele morre, sua alma não atravessa para os planos etéreos, ela fica presa dentro da moonblade, para assegurar que os donos seguintes tenham acesso à magia que ele acrescentou e para servir à espada (um dono muito poderoso consegue até mesmo evocar as almas dos antigos portadores de dentro da moonblade). A alma dos portadores ficará presa servindo à espada até que ela caia dormente porque a linhagem se extinguiu ou até que a última moonblade cumpra seu objetivo no mundo e a raça élfica não precise mais delas. Somente em uma dessas situações, as almas serão libertadas.
Um herdeiro nomeado de uma moonblade tem o direito de recusá-la, caso contrário, é testado, e passando no teste compromete sua alma conforme explicado.
Uma moonblade não pode ser tocada por ninguém que não seja seu próprio dono, e mata qualquer um que tentar, tendo bom caráter ou não. Mesmo que o dono tenha morrido, ela também não pode ser diretamente tocada por alguém que não seja da mesma linhagem / família (isso significa que um filho bastardo, por exemplo, mesmo que não tenha conhecimento da situação de seu nascimento e mesmo que tenha bom caráter, será assassinado pela espada do parente de linhagem diferente se a tocar).
Obviamente que uma moonblade mata imediatamente qualquer ser que não seja um elfo da lua e tente tocá-la.

Umrae disse...

Houve raras ocasiões em que uma moonblade pôde ser tocada por alguém que não era o próprio dono. Isso ocorreu porque o poder dado pelo dono à espada, a runa, era justamente a permissão de que aliados a tocasem. Se isso ocorrer, o aliado que tocar a espada e sobreviver, ainda que não elfo, terá sua alma aprisionada pela espada também, nas mesmas condições dos demais portadores anteriores.
Houve uma única ocasião conhecida em que, contrariando todas as convenções, uma moonblade aceitou uma meio-elfa da lua, Arilyn Moonflower, filha da Princesa Amnéstria (que também casou-se com um humano) e neta da rainha Amlaruil. Essa meio-elfa se tornou uma das maiores heroínas da história de Faerün, e foi quem descobriu os envolvidos no assassinato do rei Zaor e conseguiu capturar o elfo do sol que chefiou a operação, Kimyl Nimesin (tudo bem que, como o governo élfico é incompetente, o cara conseguiu fugir alguns anos depois).
As moonblades geralmente emitem uma fraca e pálida luz, e podem, por exemplo, ser usadas para permitir enxergar em ambientes escuros, uma vez que a visão de um elfo é superior e qualquer luz fraca é suficiente.

Bem, assim, as famíias foram testadas uma a uma, se candidatando às espadas, passando-as de geração a geração, sofrendo a humilhação de ver as espadas caírem dormentes, o que as apontava como indignas, acrescentando poder às poucas moonblades que restavam...

Até que chegu a hora de avaliar a linhagem com o maior número de moonblades ativas para escolher o rei...

Mas isso já é outra história, que conto outro dia. A história da linhagem dos Moonflower, do Rei Zaor e da Rainha Amlaruil.

Umrae disse...

Depois, lembre-me de contar também como ocorreu o golpe de Estado planejado pelos elfos de ouro, como o rei foi morto, como 12 dos 13 filhos de Zaor foram assassinados, como o 13º, o príncipe Lamruil, abdicou do trono para se casar com uma humana e se aventurar no continente, abandonando o reino, como a rainha Amlaruil governou sem descendentes aptos até o fim de sua vida e como os elfos voltaram a ser governados por um conselho.

E como esse conselho acabou com as negociações e alianças que amlaruil tinha criado com os drows bons que haviam lutado e se esforçado tanto para ter novamente o direito de viver em paz nas terras sob o sol...
E como o conselho fechou os olhos para o preconceito e o orgulho da raça, para a existência de grupos de extermínio criados pelos elfos para assassinar os antigos aliados drows e principalmente os orcs, porque não aceitavam que estes haviam pela primeira vez na história criado seu próprio reino, tido sua independência reconhecida pelas demais raças, aprendido a viver em paz e cooperação com as demais raças e forjado alianças políticas e comerciais como os demais reinos...
E como as guerras entre os deuses, que destruíram vários deles, deixaram raças e regiões vulneráveis, enlouqueceram a magia e tornaram regiões imensas inóspitas, e como a intolerância entre as raças e espécies está impedindo a terra de Faerün de se recuperar, atravessar a crise e voltar a ser a potência que era.

Nota: Faerün não é um reino, e sim uma federação de Estados com autonomia e governos próprios. Entre eles os Estados élficos, os Estados, reinos e impérios humanos, o reino Orc, as cidades-estado dos anões, etc.

Nota2: A princesa Amnestria, antes de conhecer o humano com quem se casou, quando era praticamente uma adolescente, teve um filho bastardo com o nobre de quem estava noiva na época, Elaith Craulnober. Ele ficou desiludido quando foi rejeitado pela moonblade (era o último herdeiro da linhagem), que caiu dormente, desmanchou o noivado e abandonou o reino. Antes que ele fosse embora, no entanto, teve um último encontro com a princesa, que resultou nessa gravidez, que foi ocultada de todos, até mesmo da rainha, com ajuda do príncipe Lamruil, que também foi o responsável por enviar o menino a algum lugar em que ele crescesse seguro e escondido de qualquer ameaça. Esse menino, apesar de ter nascido fora de um casamento, era um elfo da lua de linhagem pura, descendente de dois nobres, e, portanto, seria um herdeiro apto ao trono. Da mesma forma o seriam descendentes seus desde que com uma elfa da mesma sub-raça e de linhagem nobre.