segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Parte 92 - Ainda há como rir!


O sol até veio.
Até chegava a aquecer.
Mas não era mais como antes.

Logo chegou os outros que ainda cuidavam de Heppaceneoh, e para a infelicidade geral, Giovanna e Toronto estavam gravemente feridos: uns três demônios tinham sobrevivido, e os atacado ferozmente. Foram assassinados, e o fogo varrera o que ainda havia de vida naquela cidade, e muito provavelmente, nas imediações.
- O que houve? - perguntou Erevan, chocado com a visão da Gerogie.
- Uma querida majestade chamada Ophelia - murmurou Umrae que se abaixava para abrir a porta do abrigo.
- Há algo de diferente - comentou Johnny que segurava a criança adormecida.
- Sim - concordou Fer - deve ser obra de Ophelia.
O abrigo foi aberto, e todos desceram.

Aqueles que estavam inteiros e seguiam a Bel cuidaram de guardar os semi-dragões, os que estavam feridos foram imediatamente acompanhados por uma Nath resmungona e outros foram tentar descansar um pouco.
- Johnny! - o gemido de Raveneh rompeu pela sala.
Johnny sorriu, deixando a criança deitada no sofá. Deixou-se ser apertado pela esposa, agradecendo a sei lá o quê por estar vivo. A própria sorte ou a providência divina. Se houvesse.
Amai se dirigiu ao Raven quase timidamente. Seus olhos chorosos foram tudo o que Raven precisou para abraçar a garota, como um velho amigo.

Havia naquele abrigo um ar um pouco mais feliz.

- O que aconteceu? - perguntou Raveneh quando viu Gerogie passar por ela, amparada por Bel e Umrae, tendo Nath como guia toda elétrica e agoniada para cuidar de tudo.
- Encontramos com Ophelia - sussurrou Johnny acolhendo uma May sonolenta nos braços - aquela vaca machucou Gerogie.
Raveneh sacudiu a cabeça, chocada. Nunca imaginara que alguém poderia machucar Gerogie, que parecia ser tão forte e impenetrável. Que tipo de monstro era Ophelia?

Deixaram todos os guerreiros descansarem nos sofás, narrando as experiências vividas. Era de manhãzinha, porém a iluminação era muito pouco natural - estava tudo em sombras, como já fosse noite. Kitsune acendeu velas pelo aposento para tentar melhorar, mas não adiantou muito: o abrigo continuou com um ar lugúbre e sinistro. Ao menos, pensou ela, podemos enxergar as coisas. E deixou assim.
Amai ouviu aquelas pessoas narrarem sobre Heppaceneoh e os demônios.
Rafitcha ajudou a cuidar das crianças, assim como Kitsune e Tatih. Embalaram as crianças e fizeram-na dormir.
- Estão cansadas demais - declarou Kitsune com pesar - deixe-as.
Rafitcha nem conseguia encontrar forças para dirigir sua raiva a alguém - era como se o retorno dos guerreiros, sim, guerreiros -era difícil se acostumar com essa palavra aplicada ao Johnny e Raven - lhe tivesse feito esvaziar seu ódio, como uma bola de soprar que simplesmente deixa vazar todo seu ar por um furinho feito com alfinete.

Voltaram aqueles que guardaram os dragões, e foram recebidos com igual entusiasmo.
Pediram cerveja, e logo foram servidos - a cerveja ainda tinha, e ninguém negaria cerveja às pessoas que se arriscaram em prol de outros. Embora o interesse de Grillindor não era nas Campinas, e sim para que a Grillindor se mantivesse longe de Ophelia, era difícil para o pessoal de Campinas enxergar essa relação de forma tão fria, quase inumana.
- Precisamos de um plano - murmurou Bel muito baixinho, ao que Ratta replicou:
- Sim, mas não hoje. Deixe-nos beber, esquecer e amanhã voltamos a falar disso.
- Mas não temos tempo! - Bel disse alarmada, mas Umrae disse com calma:
- Ela tem razão - apontou para os outros que contavam sobre a noite passada - ninguém vai conseguir se concentrar em estratégias hoje, estão abalados demais. Quase que Gerogie morreu, não é mesmo?
- Está bem. Amanhã - Bel disse. E foi se recolher, descansar um pouco.

A loucura mal tinha começado, realmente.
Porque antes era uma guerra.
Agora era como um jogo de quem ia massacrar quem primeiro.

Quais seriam as chances de Campinas? Ophelia apostaria em uma chance de vitória em dez mil, porém agora que conhecia o trunfo, ela sabia que podia perecer. Para vencer os dragões, e reinar absoluta em todo aquele território, ela teria que ter um poder equivalente ao de cem dragões. Cem dragões! pensou.

As sombras, riu, já estavam com ela.
Então faltava-lhe o controle de outras coisas. Outras coisas que lhe dariam a vitória.
Finalmente aquelas Musas serviriam pra algo realmente útil.

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- Alicia, - chamou Lala - eu sinto-a agora. Creio que está seguro.
- Ela não pode voltar sozinha? - disse Alicia. Estava com muita vontade de matar Lala naquele momento, e com ódio também. Porque aquela ruiva tinha que ir buscar Ophelia? Acaso a rainha não tinha as próprias pernas?
Lala ficou em pé. A dor lhe vinha como uma serpente que mordia as pernas, as plantas dos pés, as mãos com todos seus dedos, seus seios e seu abdomên. Mas resistindo a tudo isso, Lala continuou em pé e manteve a expressão séria.
- Alicia, fique aqui - disse Lala - Ophelia está fraca, não pode vir sozinha.
- Deixe-na sozinha! - Alicia gritou exasperada - deixe-na sozinha, quem sabe ela é morta por algum demônio sortudo... quem sabe nos livramos dessa maldita! Se você for salvá-la, a gente...
- Eu não vou salvá-la, vou trazê-la de volta. Se eu não fizer isso agora, ela se recuperará sozinha e virá mais tarde. E matará a mim, por eu não ter seguido.
- Jamais - Alicia discordou - ela te ama, como iria te matar?
Lala fitou Alicia e seus olhos acinzentados. Era como uma verdade mentirosa, quase fuzilante e óbvia. Não... não haveria amor entre as duas. De nenhum jeito, forma, modo. Simplesmente não havia.
- Alicia - Lala sussurrou tristemente - se ela me amasse, eu estaria alforriada há muito tempo.
Alicia não conseguiu contestar, deixando Lala sair do quarto.

Gritou de ódio depois.


Ophelia era como uma donzela agonizante.
Olhava para o céu com uma expressão inexpressiva.
E movia as mãos como se fosse a primeira vez que visse as próprias mãos.

- Ophelia - Lala disse. Estava quase zangada, se não fosse a Ophelia parecer tão confusa, inocente e ferida. Já se curara dos golpes que recebera, mas ainda parecia mortalmente cansada.
- Lala - Ophelia reconheceu a voz, mas não virou o rosto para enxergar a amiga, escrava, companheira (?)
Lala sentou-se ao lado de Ophelia, colocando a cabeça da rainha em seu colo, como fosse uma mãe. Não iria conseguir se acostumar com esse trabalho. Poderia ficar anos ao lado de Ophelia, ainda haveria momentos estranhos como esse: uma escrava acolhendo sua senhora sem rancor, sem medo. Somente ternura.

- Ophelia, Ophelia - Lala olhou para o céu e para as copas das árvores distantes - o que você fez? - viu Heppaceneoh ardendo suas últimas chamas na manhã, e a fumaça que se destacava, sombria, no sol - igualmente sombrio.
A rainha sorriu debilmente.
- Nada de mais, eu só... - deu de ombros - acho que falhei. Eu queria lançar as sombras sobre aqueles guerreiros de Campinas, sabe, fazer das sombras algo sólido e... mas não deu certo.
- Estou vendo - Lala disse compreensiva - você simplesmente enfeitiçou todo esse lugar, e agora ele está todo frio e estranho, como se houvesse sempre uma nuvem tapando o sol. E estamos no verão, e isso fica ainda mais estranho.
- Eu preciso derrotar as Campinas.
- Ophelia, não pensemos em estratégias hoje, precisa descansar.
A rainha não se deixou vencer.
- Não, tenho que pensar em algo. Já vi alguns dos truques que eles tem e... pensei em algo.
- Ophelia...
- Relaxa, vai dar tudo certo.

Lala não poderia sentir maior apreensão com aquele 'vai dar tudo certo'.

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Loveh soprou levemente por entre as folhas e flores.
- Se tornou duplamente arriscado a nossa idade - murmurou.
As outras a encararam com espanto. Como pode o risco se tornar maior?
- Não tenho certeza - Loveh mexeu os dedos, brincando com o ar - os ventos são incertos. Porém... é como se Ophelia descobrisse uma finalidade para o poder que roubou de Elyon.
- Finalmente - Miih disse - bem que achei que ela estava demorando demais para descobrir os prováveis usos dos nossos poderes.
- Miih - Sunny disse amarga - você previa isso?
- Você nem pensou nisso? - Miih perguntou - aquela maldita... ela é capaz de tudo.
- Eu ainda tenho dúvidas se conseguiremos destrui-la - declarou Louise.
Alice sacudiu a cabeça, os cabelos cheios de raminhos de árvores.
- Não - disse - mas podemos abrir caminho para que o pessoal das Campinas consiga. Se enfraquecermos Ophelia, eles poderão dar o golpe final.
- É meio humilhante abrir caminho para humanos - Louise disse - não poderia ser o contrário?
- Se você quiser estar sempre por cima na situação, que fique. Mas não acompanharei você na sua presunção - rosnou Miih perigosamente.
Ninguém mais disse coisa alguma.

A floresta tinha ouvidos demais, e cabia a Alice e Loveh cuidar para que nada sobre elas fossem passado de folha em folha.

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Todo aquele dia foi carregado de estranheza.
A cada hora que passava, as sombras caíam mais e mais sobre os móveis, o piso, o teto, as pessoas. Mais e mais velas eram acendidas, e logo já não haveria mais velas para acender.

Por volta de duas da tarde, as crianças acordaram.
Primeiro, a garotinha. E depois, quase ao mesmo tempo, os garotos.
Confusos e atordoados, intimidados pelas figuras estranhas, decidiram ficar calados. A menininha não quis brincar com Maytsuri, mesmo com Raveneh insistindo - ela achava bom que a sua filha tivesse companhia - e ela preferiu ficar com os, supostamente, irmãos.
- Deixe - aconselhou Rafitcha - estão assustados.
- Está bem - Raveneh aceitou o conselho.
De modo que as crianças ficaram no canto. Quando Kitsune tentou cuidar delas para que elas comessem, elas recusavam a comida. Quando tentaram fazer com que elas tomassem banho, elas escapavam. Os dois garotos e até mesmo a menininha pareciam perceber que tinham perdido toda aquela proteção mágica conferida a eles em Heppaceneoh, e não queriam interagir. O garoto que parecia ter dez anos era o único que falava algo, e era sempre algo do tipo:
- Não quero.
Aí vinha alguém como Raveneh, Kitsune ou Tatiih:
- Mas...
- Não - e o garoto terminava o papo assim.
Maria também tentava colocar o próprio filho para ser uma espécie de companheiro das três crianças sobreviventes, porém elas rejeitavam o "novo" amigo e Gabriel também não gostava de tentar conversar com três criaturas tão amuadas e caladas.

- Deixe - Umrae disse quando foi indagada por Kitsune se teria algo pra fazer - deixe. Elas irão sentir fome, e não poderão recusar nossa ajuda até morrer. E elas estão bem, fisicamente. Elas ficarão bem, não se preocupe. Só não deixe que as outras pessoas as assustem mais ainda.
O que Umrae estava referindo a "se assustar" era com os choros escandalosos de May, com a figura dos feridos na ala hospitalar, com a Bia limpando sua espada enorme e ferina, com a irritação de Rafitcha e a apreensão geral. De modo que Kitsune acabou sendo incumbida de uma difícil missão, mas sinceramente não se preocupava muito com isso.

As crianças ficariam bem. Tinham sido fortes até ali, por não terem sucumbido aos demônios, por terem feito com que a proteção ficasse em pé - de acordo com os relatos de Umrae, Raven e Bia, Kitsune supunha que a magia precisaria de algo para que não se esvanecesse. E precisaria de magia muito mais forte que três crianças poderiam oferecer para ser construída. Talvez, Kitsune pensava, os pais das crianças montaram essa barreira e morreram exaustos... e as crianças mantiveram tal proteção erguida por algum tempo? Mas elas se recusavam a contar sobre a magia da proteção ou qualquer coisa do tipo.

- Como estão?
A pergunta era de Umrae. A resposta viria em uma expressão desalentadora e urgente de Nath.
Kibii já conseguia andar tão suavemente e rapidamente como antes, e vivia maluca porque Nath ainda não a permitira voltar a treinar com a espada, e mesmo as flechas ainda lhe pesavam os braços. Gerogie já estava melhor no dia seguinte, sempre se recuperando quase tão rápido como Ophelia, porém ainda não se sentia bem o suficiente para se mover sem sentir ferimentos.

Quanto a Giovanna e Toronto, bem, Nath fazia tudo o que podia para salvá-lo.
Toronto estava com uma perna quase inteiramente esmagada por uma língua demoníaca, e seus braços tinham muitos cortes. Já Giovanna apresentava queimaduras de primeiro e segundo grau pelo corpo todo, só salvando a cabeça, pescoço e seios. Porém todo o resto ardera em chamas, graças a um acidente infeliz durante a luta.
- Tome isso, vai diminuir a dor - dizia Nath, enquanto lamentava intimamente de que as plantações tivessem sido tão devastadas. O efeito se alastrou até mesmo nas plantas medicinais, e havia muito pouco para que ela, Umrae e Doceh pudessem fazer os remédios. E tremeu ao pensar que logo viriam mais feridos, e muito provavelmente ela não saberia salvar a todos.

- Nath - disse Umrae - qual é o estado de Kibii?
- A maioria dos cortes já curaram. Mas, por favor, fale pra Kibii pra ela parar de tentar treinar porque é a décima vez que os pontos dela abrem e tenho que costurar novamente. Ela não me ouve, mas decerto ela te ouvirá! - e Nath voltou a cuidar de Toronto, que gemia quando tentava mover a perna esmagada. Nath estava tentando de tudo, mas ela sentia que talvez tivesse que amputar o bom soldado.
Umrae nada disse.

Observou Amai e Tatiih subirem para cima, protegidos por Doceh e Bia que serviriam de guerreiros para qualquer ataque não previsto, como era a nova política. Rafitcha também subiu, pois precisava lavar roupas. Apesar da carga ser maior do que a habitual, já que teria lavar as roupas dos feridos, cheias de sangue, recusou qualquer companhia. Dizia que queria ficar sozinha, conseguir descansar e o dia todo estava muito quente, de modo que não era problema demorar mais um pouco mais.
- Mas ir sozinha nesses tempos é perigoso - ponderou Kitsune alarmada - pelo menos leve alguém que lhe proteja.
Mas Rafitcha argumentou que se fosse alguém, então que fosse uma pessoa que se mantivesse distante o tempo todo. Como Fer estava ocupada, sendo responsável pela cozinha e limpeza do dia juntamente com Raveneh, Kitsune e Thá (esta também atarefada com a responsabilidade de auxiliar Nath), e todos os homens estavam meio ocupados também, então Kitsune aconselhou Rafitcha a lavar as roupas perto de onde os dragões ficavam, assim poderia ser ajudada pelos soldados de Grillindor caso fosse atacada, e estaria suficientemente longe para não ser perturbada por ninguém.
- Está bem - foi tudo o que disse, e com a ajuda de Johnny, levou as trouxas de roupas até a beirada do rio.
O rio era cristalino e profundo.
Não havia nenhuma sujeira nele. Nada.
- Tome cuidado, irmã - disse Johnny - fique bem.
- Vá lá.
E ele foi embora pelas árvores, deixando a irmã sozinha a lavar roupas.

Ela não se sentia incomodada. Ela nunca se incomodara em lavar roupas, a louça, cozinhar, em fazer essas coisas domésticas. Sempre fora independente, seja na escola onde crescera, seja na casa onde assumia as responsabilidades, dispensando os criados. Ela dizia que não poderia contar com a riqueza para sempre. E agora, nas Campinas, vivia melhor do que quando com os pais ou na escola, entre aquelas fadas tão insuportáveis e fúteis. Mesmo agora, na guerra, ela não trocava essa vida do que quando vivia brigando com a mãe nos verões ou pelos deveres de casa na tranquila escola.

Estava com seus amigos. Johnny estaria ali, e ela sabia que ele estava seguro enquanto tivesse Umrae, Maria e todos aqueles soldados a protegerem um cara tão alheio a disputas como Johnny. Sempre foi forte, pensava enquanto se preocupava em tirar manchas de sangue de uma blusa, sempre foi tão metido a macho, como se pudesse ser superior a mim. E ainda assim, tão delicado como uma flor. Não admirava que Raveneh o adorasse: ele era o perfeito marido, aguentando-a nos momentos de loucura e pesadelos, tendo tanto empenho em cuidar da esposa e amá-la verdadeiramente. Ele sempre foi desse tipo. Só se metia a trogodila com a irmã, só por provocação. E esses momentos de adolescência passaram.

Aqui estou eu, pensou quase amargurada.
Imaginou onde estaria suas antigas amigas dos tempos de escola. Talvez mortas na guerra. Ou escondidas nos abrigos. Donas-de-casa. Casadas. Advogadas. Professoras. Ricas. Provavelmente cada uma delas olharia para Rafitcha e diria com todo o desprezo que pudesse:
- Poderia ter tudo. Dinheiro, trabalho, mordomia e um homem. E ela dispensou tudo para vir morar aqui, no campo com todos esses caipiras. Que Deus não permita que meus filhos façam isso!
Mas nada disso lhe doía. Seus pais se doeram por causa disso na época, mas porque ficar relembrando como seria sua vida se optasse por outros modos de viver? Já fizera a escolha, já largara todas as mordomias. Só tinha consigo o sobrenome agora, porque sua herança deve ter se perdido nessa zona de guerra. E estava realmente feliz, mesmo que estivesse tão tensa e irritada com a prisão no abrigo.

E, assustada, percebeu que as águas se moviam como uma cobra a se mover por dentro delas...
Tranquilizou-se rapidamente. Estava dividindo a mesma área que os dragões mestiços ocupavam, e eles com certeza se mexiam e faziam com que a água do rio se mexesse. Isso acontecia o tempo todo, ela só não percebia. Continuou seu trabalho, um pouco mais tensa, mas ainda assim calma. Não iria parar agora por causa de uma suspeita!
De repente a roupa que lavava foi puxada por algo dentro da água.
- Ei! - ela gritou, e recuou.
Não se apavorou. Se ela gritasse bem alto, viria alguém a lhe salvar.
Da água, apareceu uma cabeça mastigando a roupa. Era como uma cobra. Com pernas. Algo mais parecido com um lagarto.
De olhos estreitos e puxados, parecendo duas fendas enormes e negras, o demônio se arrastou para a terra, aproximando-se de Rafitcha. Ela se levantou, trêmula, e recuou mais ainda.
- EI! - gritou mais alto - SOCORRO!
Será que alguém a ouviria? Ah, que tola foi de recusar alguém a lhe ajudar... ainda que Crazy estivesse ocupado, por exemplo, ele largaria suas funções para ser guarda-costas de Rafitcha, caso ela lhe pedisse... qualquer homem faria isso, qualquer mulher também!
- MONSTRO! - Rafitcha gritou, de raiva - MONSTRO! NOJENTO!
As pernas, pequenas e deformadas, se arrastaram...
E toda a roupa foi devorada, engolida e logo o demônio abriu a boca, mostrando seus minúsculos dentes, porém afiados, muito afiados. Caso mordesse uma pessoa, essa pessoa sangraria até a morte e Rafitcha tinha certeza que havia veneno naquele bafo, na língua e nos dentes, a julgar pela secreção esverdeada e nojenta que enxergava na gengiva...
Rafitcha esbarrou numa árvore, percebeu que estava quase perdida. Ainda que corresse, ele era maior e mais rápido. E ainda tinha um rabo, fino e comprido, que ele movia com rapidez e elegância. Percebera que usava o rabo para pegar algumas coisas, e assim fez para capturar uma árvore e engoli-la imediatamente.
- Não é bom - disse o demônio numa voz grasnante - mas você ser... boa.
Era só o que faltava.

Escapuliu por entre as árvores, na direção do exército de Grillindor, sentindo a língua - fina e comprida assim como o rabo - lhe tocar os pés, tentando lhe fazer tropeçar.
- Ah, pelos Deuses, meu Deus - choramingou enquanto corria - por favor, por favor...
Sentia os pés queimarem depois que a língua deixava de tocar, e corria mais ainda, com os pés formigando. E de repente, tão rápido, teve a sensação de algo se enrolando entre suas pernas e lhe puxando. Tropeçou, arranhando os braços, tentou resistir. Gritou mais, e mais, e mais. Virou-se, quase cansada de gritar, percebeu que estava sendo puxada pelo rabo.
- Maldito - disse ferozmente, se debatendo, resistindo, indo para a direção contrária. Não iria virar comida de monstro...
E tão rapidamente como quando ela tropeçou, veio alguém. Alguém que lhe ouviu.
Era do bando de Grillindor.
Estava lá, cuidando dos dragões negros por ali.
- !! - fez Rafitcha, chocada e aliviada, quando observou o demônio soltá-la, guinchando de dor, e seus olhos sangrarem como alguém a feri-los... e ela nem ao menos via o ser...
Ele se contorcia, ele guinchou, ele urrou de doer.
E por fim desabou no rio, aliviando Rafitcha do seu fardo.
- Quem? - ela sussurrou, tentando enxergar o seu benfeitor. Era alguém de cabelos negros. Alguém que veio juntamente com Bel. E não era humano, mas não conseguia lembrar muito bem do seu nome...
- Está salva? - disse Erevan suavemente.
- Sim. Obrigada - disse Rafitcha, ainda tentando lembrar o nome do cara. Era alguma coisa com 'E'. Era alguma coisa bem élfica, estranha e mística, sabia disso.
- Sou Erevan - se apresentou.
- Ah.
Rafitcha sorriu, agradecendo mentalmente ao cara por ter dito seu nome. Tentou se levantar, mas não conseguiu - caiu de volta, sentindo seus pés muitos fracos, como se fossem papel.
- Droga - ela disse, analisando os pés. Haviam sido queimados. Não o suficiente para não conseguir andar pelo resto da vida, mas o suficiente para fazer Nath se estressar e lhe recomendar um ano de repouso, só de garantia. E não poderia carregar sozinha as roupas de volta para o abrigo, e muito menos andar por aí.

Agora mesmo que Kitsune iria ficar dando uma senhora bronca por não ter querido levar alguém que lhe protegesse.
- Viu? - podia até ouvir a voz de Kitsune - veja sua sorte! E se tivesse levado alguém, provavelmente nem teria sido ferida!
Agora mesmo que vou encher o saco de Bia para me ensinar a lutar, pensou revoltada. Que culpa tinha ela se nunca foi educada para as espadas como Bia, e se não tinha dom nenhum para isso? Ela só cumpria os deveres dela como mulher das Campinas, e tinha todo o direito de cumprir esses deveres solitária, se quisesse!
- Algum problema? - Erevan perguntou.
- Nenhum - Rafitcha disse debochada - imagina se ter os pés queimados não é problema!
Erevan sorriu, e se sentou ao seu lado.
- Aquele ser lhe queimou os pés?
- Veja - Rafitcha resmungou - bem, pegue uma blusa da cesta, por favor?
Erevan caminhou até as cestas, e perguntou de qual delas retirava uma blusa?
- A primeira, a esquerda. Isso, agora traga a blusa pra cá.
Tendo a blusa nas mãos, Rafitcha rasgou. E dos pedaços rasgados, fez uma atadura em volta dos pés. Não iria adiantar grande coisa, mas pelo menos não ia sentir tanta dor ao pisar em cima dos galhos e madeira.
Tentou se levantar, e dessa vez controlou-se para que não caísse. Conseguiu caminhar até a beirada do rio, onde recolheu as roupas que foram espalhadas na confusão, e juntou tudo o que podia. E recomeçou a lavar as roupas.
- Maluca - Erevan disse - não vai voltar ao abrigo?
- Não mesmo - Rafitcha disse com uma espécie de grosseria, mas ainda se mantinha muito delicada.
- Por quê?
- Veja o céu - Rafitcha sussurrou áspera - veja só como o sol queima, arde, mas é sombrio! Agora imagina só como o abrigo tem menos luz e mais sombras! Você quer que eu passe outro dia presa lá dentro?
- Tudo bem - Erevan sorriu - então deixe-me ajudá-la.
Rafitcha desgostou. Queria realmente ficar sozinha... por mais que tivesse ficado grata com o dragão (ou homem, nem conseguia definir sua espécie), ainda assim tinha anseio por pensar, perder-se nos devaneios sobre sua vida, futuro, guerra e tudo o mais. Mas Erevan insistiu, e ela não sabia como recusar um favor de um cara que tinha acabado de salvar sua vida.

- Bem - Rafitcha disse, tentando engolir a derrota - que espécie de gente é você?
Erevan meio que sorriu. Um sorriso torto. Mas era um sorriso.
- Um dragão, ora. Assim como você é uma humana.
Rafitcha meneou a cabeça, sorrindo, e continuou a lavar a roupa. Ficara calada, mas daquele minuto em diante, sentia que até mesmo o sol sombrio lhe aquecia com um pouco mais de ternura.
Chegava a ser fascinante ter um momento de paz entre tantos de tumultos.

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- SUA IDIOTA! - a voz de Nath chegava a ecoar pelo abrigo com a força de um terremoto. Ou só de uma enfermeira muito sobrecarregada também. Rafitcha ficava calada, engolindo todas as broncas da ruiva. Erguera os pés, e agora estavam cheios de bolhas.
- Idiota, tola, baka! - e os xingamentos eram jorrados enquanto Nath se preocupava em cuidar dos pés - você tinha que ter vindo pra cá imediatamente, e você, Erevan, não tinha NADA que ter ficado lá, de papo com ela! Tinha que ser um cavalheiro e trazê-la para cá i.me.di.a.ta.men.te! Idiotas, idiotas, idiotas!
- Mas não sou um cavalheiro - murmurou Erevan aparentemente confuso - sou um dragão.
Rafitcha riu, acompanhada de Amai e Thá que acompanhavam a cena com humor.
- Deixe de humor desgraçado, Erevan, seu petulante! - Nath disse venenosamente, apertando o pé esquerdo de Rafitcha com tanta força que a fez gritar de dor - desculpe, querida. Mas se você não fosse tão burra e fugidia, não estaria aqui, reclamando da dor, não é? Agora aguenta! E Erevan, fique aqui, mocinho! Você é o segundo culpado por não ter feito com que ela viesse pra cá, e portanto nem queira saber de fugir. Vai cuidar de Rafitcha agora porque estou muito ocupada com pessoas que se feriram e procuraram imediatamente a minha ajuda!
Erevan se sentou na cadeira ao lado do leito onde Rafitcha se deitava, com cara de criança amuada.


- Vejamos, Umrae - Bel encarou o mapa da cidade das fadas com uma espécie de cinismo e deboche. Umrae quase podia ler seus pensamentos que eram algo como que construções cafonas ou pensei que as fadas tinham bom gosto. Nem comentou algo, e chegava até a compartilhar a opinião de Bel em relação a algumas construções terríveis das fadas.
- Esse é o palácio - Umrae sussurrou calmamente - Ophelia fica por aqui - e o mapa se desdobrou, revelando o interior do palácio, com os quartos, depósitos, masmorras. Bel sorriu ao se deslumbrar com o mapa encantando, perguntando:
- E esse mapa é fiel?
- Eu o ganhei no ano que te treinei - Umrae respondeu - era a época da mãe de Siih, uma Rainha firme. Tinha contatos, e na época fiz um favor para as fadas, e tive o mapa como parte desse serviço. E ele ficou comigo. É muito útil, devo conversar, e creio que seja fiel, sim. Foi feito pelos próprios artesãos da corte.
- Hm, então tá - Bel disse - devíamos ter pensado nisso antes.
- Não dava - Umrae admitiu - ele estava perdido, e só o encontrei esses dias, mas acabei me envolvendo demais com a missão em Heppaceneoh, e esqueci. Mas agora é hora, não é mesmo?
- Sim - Bel tocou a ponta do palácio minúsculo, admirando como os cômodos eram vazios de móveis.

- Ophelia está contaminada pela própria loucura - Umrae reunia os fatos, tentando achar alguma lógica - e tem poder, muito poder. Ela fez descerem as sombras sobre Campinas, e poderia ter causado uma noite eterna. Felizmente, sua magia falhou.
- Hm.
Os olhos dourados de Umrae se estreitaram, pensativos.
- Sua magia é algo muito forte. Provavelmente seria aniquilada em Faërun, porém aqui, nesses territórios, devo conversar que ela é poderosa. E ela tem um novo poder, pois essas sombras não eram parte de sua personalidade antes. Aliás, não são. São coisas novas. Poderíamos usar a Lala, mas é baixar o nível demais. E, pensando bem, não iria funcionar muito bem... Lala pode ser algo essencial para Ophelia, mas imagino que ela gosta mais do poder do que de Lala. O que temos que descobrir é como minar essa magia... Ophelia tem força nos poderes, especialmente nos truques de luta. Se descobríssemos um modo de cortar toda a magia existente, venceríamos... porque temos a técnica, e não dependemos da magia para vencer.
- Falou como uma líder - Bel elogiou - mas tem alguma idéia?
- Não - Umrae sussurrou.

Bel inclinou a cabeça docemente, e decidiu de vez:
- Que tal descansarmos um tico, deixarmos os soldados se reestabelecerem? Enquanto isso podemos pensar nessa estratégia, porque ela me parece muito boa. E podemos contar com os dragões, porque a magia deles transcede a tipicamente "opheliana" (rs), e não é algo que pode ser abalado por feitiços, nem nada. É algo que está na carne.
- hm - Umrae fez - então, tá.

E dobraram o mapa, guardando-o na primeira gaveta da escrivaninha.


Aaaaaahhh, que bom saber que vocês não me abandonaram, fiquei emocionada, muito emocionada *0*
E como vêem, eu me esforcei pra digitar algo "mais grande" (que erro fenomental e proposital D:), sabe, pra vocês, algo ENOOORME e que não fosse uma encheção de linguiça, será que ficou bom D: Tentei colocar humor, porque a história estava ficando muito emo, com sangue, derrota, bla bla bla e isso me cansa, não gosto de histórias que o povo só sabe perder com derrota na cara. Aí fiz uma Rafitcha mais 'light', e tal. Mas falho miseravelmente na comédia, não sei ser sutil D:

Umraaae, saudades de ti :* E adorei essa frase, cara, tudo a ver com Ophelia, loucura. Sério mesmo... e em relação ao caos, bem... finalmente acertei em alguma coisa em relação a você, porque imaginei que a Umrae da história pensaria assim: caos dói, mas é necessário .-.
Agora é o segundo acerto (o primeiro foi das blusas brancas, lembra?)

Ratinha, lovenha, obrigada pela preocupação! Sim, o troço da escola tá difícil (tive prova hoje, de eletricidade *vontade de matar professor on* e amanhã tenho outra prova, de quimíca. Meus dois infernos pessoais, ainda bem que fim de 2009 está perto, com ou sem repetência de ano +_+), mas vou conseguir superar. Afinal minha intenção é chegar na faculdade, sei lá de quê, mas chegarei. E, GURIAS, cheguei na 5ª fase da Olimpiada de História! Isso significa que se eu passar da 5ª, eu chegarei na 6ª (dã), mas o que a 6ª fase tem de especial? Simples: ela significa 'VIAGEM A SÃO PAULO' *O* Quer dizer, pra Campinas, SP, mas considerando que eu só saio de Bahia pra ir numa cidade do tamanho de um ovo em MG, Campinas é uma evolução super-mega-power, e quem sabe, posso até escapar pra SP, capital e conhecer Sampa e tal -aí, quando eu passar, vou querer um power-guia-turístico de Umrae, okaay?

bem, meus docinhos, irei-me. assistir novela, estudar, dormir, essas coisas e logo, logo vocês me verão torturando mais meus personagens *-*

2 comentários:

Umrae disse...

Se você vier mesmo para São Paulo, me avisa.

Ha ha, vai achando que vai dar tudo certo, Ophélia, vai...
O poder é um amante volúvel e infiel, que rapidamente perde o interesse e parte em busca de outra diversão.
Lembrei que eu estou te devendo a pesquisa sobre as moonblades, a família real élfica e essas coisas. Vou te mandar um pouquinho mais do background da minha personagem também.

Bjos.

- L disse...

Lunoska, tá mara. *-*'
Eu senti um clima entre Rafitcha e Erevan? UHSAHASHSAHU! (Eu vejo clima em tudo, ignore. mesmo.)
O capítulo foi mto bom. :D
E a Ophélia achando que venceu, ai ai... uhsauhah
E vc vai pra Campinaas? :o
Vc podia passar em Curitiba, né? HUASUHSAHUSA!
;***