quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Parte 57 - Alguns pedaços de ouro e rubi. E algumas pretensões escondidas.

- Estão demorando demais - atestou Umrae, que começava a se preocupar.
Ela olhava para a porta, a sua besta cuidadosamente posta em um local estratégico. Mas achava que a tentativa era inútil: com certeza Rafitcha estava se ferrando, e talvez só Bia não fosse suficiente para conter Lala e Ophelia. Talvez.
Caminhou pelo muro com delicadeza, nunca deixando o portão principal fora do campo de visão. Sua intenção era alcançar Kibii-chan e Ly, para os três invadirem o castelo e assim tentarem ajudar, apoiando Bia.
Escolheu um dardo todo pintado de amarelo, um dos poucos que ela tinha. Não era fatal, somente um sinal que ela e Kibii combinaram antes: era como um código. E um dardo pintado grosseiramente de amarelo significava "ajudar os outros". Vindo de Umrae, significava se unir a Ly no portão. E assim, Umrae conseguiu passar seu recado.

- Droga - Kibii sussurrou, ao verificar o dardo amarelo que se encaixou com perfeição em uma falha, entre duas pedras que ajudavam a formar o muro.
Ela recolheu as flechas com cuidado, e com cuidado, apoiou-se em falhas no muro para descer sem barulho. O fato de ter derrubado um jaken serviu, pois o corpo do demônio ajudou a amortecer a sua queda, quando chegou ao chão. No final, tanto ela quanto Umrae sequer se arranharam na descida para o chão. Obviamente Ly achou intrigante a chegada inesperada das duas, mas ele não discutiu. Sabia que os instintos de Umrae sempre estavam certos. Não importa a situação.
- Dessa vez...? - Ly deu um sorriso de canto, claramente pedindo uma explicação detalhada dos motivos que faziam Umrae e Kibii se deslocar de onde estavam.
- Demoram demais - Umrae disse, como sempre, categórica e definitiva.
- Ah, sim - Ly disse - é verdade.
- O que devemos fazer? - Kibii olhava para a porta, seu peito descendo e subindo, tentando controlar a própria ansiedade.
Estava meio que nervosa demais.

Quando ela era criança, ganhara um colar de presente. Ela lembrava que recebera o presente aos nove anos, de seu professor que a ensinara a usar o arco e a flecha. Era um pingente curioso, com uma forma estilizada de uma sereia. Era feita de algum material que lembrava pedra, mas era bem macio. Os olhos eram grandes, o cabelo chegava à ponta da cauda. Mas era uma sereia bonita, e brilhava. Suas orelhas eram pontudas, e o cordão era de prata. Na época, achara que fora feito grosseiramente por algum forasteiro. Mas agora, ela tinha a estranha sensação de que a sereia era a simples retratação de um cruel demônio. Ela ainda tinha o pingente quebrado, não se lembrava mais de como se partira ao meio. Mas ela ainda tinha, guardada em seu enorme acervo de lembranças que ela não conseguia ter na mente.
Era até desesperador não conseguir lembrar de toda a sua vida, mas o fato de saber seu nome completo, sua condição e os ensinamentos de guerra lhe bastavam. Um pai, uma mãe. Não se lembrava direito dos parentes, tudo lhe parecia borrado demais.

Era assim que estava agora. Borrado demais. O portão do palácio estava borrado demais, as cores difusas e diluídas em um negro triste e sinistro. E quando Umrae conseguiu fazer a porta abrir, usando algum encantamento que ela não conseguira reter na mente, tudo lhe pareceu disforme e grosseiro. As portas, na sala circular, com estátuas estilizadas de demônios, uma acima de cada porta. Reparou, com um aperto no coração, que todas as portas estavam fechadas.

- Como...?
- O que você está fazendo?
- Essa voz... - Kibii fechou os olhos, identificando com facilidade.
- Sinto muito.
- Não conheço essa voz - disse Umrae, parecendo pensativa.
- Que droga você acha que está fazendo?
- É Amai - Ly observou.

- O que acha que está acontecendo? - Kibii se virou para Umrae, e esta com todo o seu conhecimento de guerras e muito senso crítico, logo deu a sua opinião, fria e exata.
- Bia perdeu a luta.

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Doía.
Doía demais, tudo doía. Até tomar o chá, feito por Thá, doía. Até o chá, que era uma fraca imitação dos esplêndidos e confortáveis chás de Rafitcha, doía tomar. A garganta dava nós impossíveis de desatar, ou pelo menos, Doceh acreditava assim. Ela só queria morrer, definhar, descansar de tudo aquilo.
Ela queria simplesmente parar de sentir.

Simplesmente doía.
Todas as pessoas estavam apáticas, as poucas crianças rapidamente silenciadas. E todos tremiam. Maria enfrentava tudo com firmeza, sempre se mostrando tranquila. Mas até mesmo o seu filho, uma delicada criança de dez anos, sabia que dentro daquela impenetrável couraça de serenidade e liderança, havia uma alma insegura e partida ao meio.
Maytsuri dormia.

- Acha que voltarão vivas? - Lynda perguntou, enquanto ajudava Thá a remendar algumas roupas.
- Acho - Thá tremeu na hipótese de Umrae voltar morta, ensanguentada ou qualquer coisa do tipo.
Lynda abaixou o capuz, seus cabelos aparecendo, presos. Ela parecia muito concentrada em consertar a bainha de um vestido muito comprido e pesado, pouco adequado aos trabalhos no campo.
- Umrae sobreviverá, não se preocupe - Lynda sussurrou - preciso voltar a ver minha irmã.
- Sua irmã? Mas... - Thá ergueu os olhos, surpresa.
- Eu vivi bastante tempo longe dela, isso é estranho - Lynda disse, toda calma, sem desconcentrar do seu vestido - nós fomos péssimas enquanto éramos mais jovens... mas agora tudo mudou. Desde que eu vim para cá por causa de Mycil, eu não a vejo.
Mycil... Thá conhecia esse nome somente de ouvir, mas sabia o que Lynda lhe contava e supunha o resto que a amiga ocultava discretamente. Devia ser doloroso perder a irmã mais nova, a irmã que protegera durante tantos anos. E tudo por causa de um estúpido amor, um amante que não dava a mínima bola. Chegava a ser ridículo.
- Eu... - Lynda abaixou os olhos, como sempre, fria - é melhor eu voltar.
- Estamos em uma guerra - Thá observou.
- Eu me viro - Lynda sussurrou - e vocês não precisam de mim. Todos sabem dar conta aqui, sozinhos.
Thá não pôde contestar a verdade dita nos lábios da amiga.

Quando tinha sete anos, Doceh aprendeu a fazer seu primeiro bolo deliciosamente confeitado e cuidadosamente envenenado. Ela havia feito peça por peça, maquinando cada junção de ingredientes, a beleza de se misturar o açúcar ao leite e a farinha bem batida, com os ovos logo adicionados e misturados à massa. E os venenos, sempre fatais, que se misturavam sutilmente à massa do bolo. Um gole a cada ingrediente adicionado. Com muita calma, frieza e paciência.
Mas de que valiam todos os estúpidos ensinamentos para matar, envenenar, cozinhar quando na hora do perigo, ela tremia como louca?
- Doceh? Você está bem?
Era Raveneh. Com toda a sua doçura simplesmente incomparável e suas longas madeixas douradas presas no alto da cabeça, ela estava ali, lhe perguntando como estava. Doceh deu um fraco sorriso, logo pousando a cabeça na mesa. Na mão direita, o chá esfriava.
- Não.
"Você está bem?"
Era a pergunta mais idiota que podia se fazer à uma mulher com medo. Com medo de ficar sozinha, de perder, de ficar desamparada.

- Hey, garota, o que acha de a gente se casar?
- Uma idiotice completa. - Doceh riu.
Ela ajeitou o remédio, a infusão de ervas estava no ponto. Mais um pouquinho, e ele estaria bem. Perfeitamente bem.
- Ora, vamos, querida.


Foi assim o dia que ela reconheceu o amor nos olhos dele, não foi? Quanto tempo desde essa cena? Onze anos? Doze anos? Tanto tempo para construir o amor de forma quase unilateral, de forma que ela nunca imaginou. Por mais que ela tivesse presenciado o marido ir pra guerra várias vezes, ela nunca realmente sentira esse aperto. Talvez porque os dois passaram a lutar do mesmo lado, juntos, como um só.
Perdera-se.

- Ly voltará - a voz doce de Raveneh chegou aos ouvidos da esposa que estava em casa quando não devia estar.
- Espero que esteja certa - foi tudo o que Doceh pôde dizer.

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Ophelia encarava as portas com absoluta frieza e calma, como se soubesse o que havia lá atrás. E Rafitcha percebeu. Ela percebeu a direção do seu olhar, percebeu que havia muito tempo desde que entraram e simplesmente somou dois mais dois. Umrae, Kibii, Ly. Tentou avaliar a força dos três, unidos. Será que conseguiriam vencer Lala? Com certeza, se unissem perfeitassem, funcionando em perfeita sintonia.
Umrae poderia vencer se mantivesse calma, como sempre.
Unida com Kibii, praticamente formavam uma perfeita dupla. E com Ly de apoio...
- Bia... - Amai sussurrou, quase aos prantos. Estava com medo demais, tinha que admitir.
Alicia amarrou os cabelos, como se tivesse tomado uma rápida decisão. Não que funcionasse, mas tinha que servir à Ophelia, mesmo contrariando o próprio orgulho. Ou isso ou a própria vida. E não estava afim de perder a própria vida por culpa de uma qualquer.

E logo, a Rainha começou a raciocinar se seria melhor abrir as portas para os três novos visitantes que não sabia quem era. Se estavam ali, e suas energias eram um tanto diferente. Teve que se concentrar melhor, até perceber o motivo de tanta diferença: duas das pessoas ali fora eram elfos, portanto muito diferentes de fadas. E um deles sequer tinha energia, mas Ophelia era astuta e conseguia perceber que era um humano, absolutamente comum. E em todos os visitantes, havia rastros de jakens, demônios derrotados.
Conseguiram derrotar os meus soldados?
Ela sorriu. Uma luta com eles seria deveras interessante. E caso se unissem com Bia, seria bem melhor, sem dúvida! Seu desejo de tomar as Campinas aumentou, causando ardência em seu estômago, lhe dando excitação e ansiedade. Seus olhos grandes e castanhos brilhavam vivamente, seu sorriso parecia ser de uma criança. Lala tremeu ao ver aquele rosto, e logo compreendeu o motivo.

Se fechasse os olhos, podia sentir três pessoas lá fora. Três guerreiros que lutavam com todas as suas forças, guerreiros que jamais deviam ser desprezados. Não queria lutar de novo, estava meio que cansada. Porém se fosse preciso fazer por Ophelia... se ajoelhou diante da amiga e mestre, e curvando a cabeça em sinal de submissão, perguntou, a voz exausta:
- Pede que eu abra a porta?
Ophelia não disse nada. Sentada na cadeira, seu vestido sempre decorado com um bonito decote que mostrava o seu bonito e reluzente colo e a sutil linha que indicava seus redondos seios, o sorriso de criança brilhando, os cabelos castanhos e ondulados que somente cresciam. E a coroa reluzindo, de ouro e rubi, uma coroa que Ophelia amava usar. Ela estava lá na poltrona, acima de todos.
E quando Lala piscou os olhos, ela não estava mais lá.

- Ophelia?
Se virou, percebendo que Ophelia estava ao lado de Rafitcha, a fitando friamente. Rafitcha estava com medo, mas nunca demonstrava isso.
Estúpida, achou Lala naquele momento, Ophelia vai torturá-la antes de matá-la se continuar com essa postura de "não tenho medo de você"!
Rafitcha estava com os cabelos despenteados, os olhos absurdamente inexpressivos e a postura meio que curvada, como se estivesse desanimada. Na verdade, estava curvada porque Amai se dependurava nas suas costas, uma se apoiando na outra. Pareciam simples mulheres do campo.

Tão rápido como Ophelia foi até Rafitcha, foi Bia que logo se ajeitou atrás de Ophelia, a sua espada na posição correta, logo acima de Ophelia.
- Se fizer qualquer contra elas - a voz de Bia penetrou em todo o ambiente, quase como um silvo de cobra - eu te mato.
- Ora, tolinha - Ophelia riu, sua voz bastante adocicada - acha que pode me matar? Você, uma reles caçadora de demônios?
- Eu não sou uma reles caçadora de demônios - a espada estava a menos de cinco centimetros da cabeça de Ophelia. Mas ela continuava rindo, olhando para Rafitcha, sem qualquer forma de se mexer já que qualquer movimento faria a espada se mover, e fatalmente, machucá-la - não me conhece.
- Ah, é? - Ophelia parecia feliz - então qual seu nome, mesmo, e quem foi sua mestre?
- Meu nome é Bia - a espada agora acariciava a coroa que poderia ser cortada a qualquer momento - e a minha mestre foi a Lia.
- Lia? - Ophelia fechou os olhos como se tentasse lembrar de quem era. E logo os abriu, triunfante - por acaso, eu já ouvi falar. Não é uma caçadora de demônios que brigou com Elyon?
- Exatamente. Sabe qual foi o final da briga, não é? - Bia parecia se divertir com toda aquela expectativa pré-morte, embora nada em seu rosto demonstrasse isso - Elyon perdeu.
- Claro que sei - Ophelia disse - acontece que eu não posso perder pra uma aprendiz de Lia. Sou mais forte que a mestre, que dirá da aprendiz!

Um segundo. Um centímetro.
Um baque de ouro e rubi no chão. E alguma coisa cortando o vazio.
A espada cortou o ouro. Rompeu o poderoso rubi em questão de segundos, segundos que não foram vistos nem contados. E Bia já estava preparada para a sensação familiar de cortar a carne, sentir o sangue em si, o alívio que sempre invadia seu corpo nessas ocasiões. Mas depois do ouro e rubi, o que veio foi simplesmente o nada. Rafitcha se encostara na parede, Amai quase sendo esmagada, em um reflexo rápido. Quando Bia se deu conta, a espada estava apontada para o chão, nada mais havia entre ela e Rafitcha. E o alívio se dissipou assim que ela percebeu que Ophelia escapou.

- Quanta pretensão em achar que pode acabar comigo. Ainda vai precisar comer muito feijão com angu para me encarar, hein, garota?
Ophelia ria, já posicionada para lutar. Bia reparou que ela rasgara o vestido desde a bainha até a cintura, provavelmente para se mover melhor.
- Mas eu vou matá-la - Bia sussurrou.
Ophelia abanou a cabeça, como se sentisse pena da garota. Um passo para trás, seu raciocínio dando mil voltas.
- Não conseguiu matar Lala!
- Ei! - Lala exclamou quase que indignada. Estava sentada ao lado da poltrona, admirando a luta, desinteressada.
Bia recuou. Embora ela estivesse tão irada, tão tentada para lutar, tinha que admitir: não podia vencer Ophelia. Não conseguira sequer machucar Lala direito, que dirá de Ophelia que era bem mais poderosa que a aprendiz? Suspirou, como se tivesse desistido.
- Bem, então deixe-nos ir embora - disse - você deve ter percebido que há três pessoas lá fora. E tenho certeza que elas acabariam com Lala em um segundo.
- De jeito nenhum - Lala riu de canto, seus olhos cor de mel brilhando de uma forma estranhamente fanática - ninguém pode me matar, exceto alguma das Musas.
- Veremos - Bia parecia fuzilar a garota com os olhos.
E Ophelia sorriu.

Estava prestes a deixar os recém-chegados entrarem, e assim mais algum sangue ser derramado.